Na primeira pessoa: “Nunca digo a um doente que só tem x anos de vida”

Texto de Catarina Fernandes Martins | Fotografias de Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Nunca digo a um doente que tem x anos de vida. Há outras formas de dizer o mesmo mas, acima de tudo, o importante é ter cuidado ao falar com ele, correndo o risco de, se não o fizermos, arruinarmos a relação. Temos de dizer as coisas gradualmente e tendo em atenção o que o outro quer ouvir. Também nunca concordei com a ideia de que os médicos não deviam dizer ao doente que ele tinha cancro.

Quando comecei a trabalhar, nos anos 1970, ter cancro era uma condenação e eu sentia isso ao dar a notícia. Só aquela imagem ameaçadora do caranguejo… Mas depois de entrarem no IPO e de conversarem com os profissionais a imagem muda para melhor e os doentes já não querem sair daqui. Hoje, viver com cancro é totalmente diferente. É uma doença muito grave mas há muitos cancros curáveis e, quando não o são, a vida da pessoa é melhor.

«Quando comecei a trabalhar, nos anos 1970, ter cancro era uma condenação e eu sentia isso ao dar a notícia. Só aquela imagem ameaçadora do caranguejo… Hoje, viver com cancro é totalmente diferente», diz a oncologista Maria José Passos.

Faço parte do primeiro grupo de especialistas em cancro com papel passado em Portugal. Nestes últimos trinta anos tive a sorte de assistir a grandes avanços na área dos tratamentos. Acompanhei a fase em que tudo mudou. É bom ver que transformamos um diagnóstico de condenação e a pessoa fica curada ou vive uma vida normal.

Quando um doente vem ter connosco já depois de receber a notícia da doen­ça, vem geralmente muito assustado e há que percorrer um caminho. Mesmo para aqueles doentes que vão morrer, é sempre possível fazer alguma coisa. Nesse caso concentramo­‑nos em que morram com dignidade, sem sofrimento.

“Ao longo destes anos, várias histórias me impressionaram. Mas quando vemos jovens com doenças muito graves, quando vemos um filho de 18 anos partir com grande sofrimento à frente de um pai… Ver o sofrimento dos pais é avassalador.”

Nunca há uma situação em que digamos que não há nada a fazer. Na maioria dos casos, os meus doentes exigem saber absolutamente tudo sobre a doença, mesmo numa perspetiva científica. É por isso que acho que os doentes têm de ter formação para poderem procurar informação de forma dirigida e terem direito a saber o que querem saber.

Tive alguns casos de cancro na minha família, mas não foi isso que motivou o meu interesse pela doença. O cancro atraía­‑me porque é muito dinâmico e desafiante. Mesmo a carga emocional associada ao cancro me desafiava.

“Acho que me transformei numa pessoa mais calma e acima de tudo aprendi com os doentes a dar importância ao que é importante e a deitar fora o que não presta.”

Ao longo destes anos, várias histórias me impressionaram. Mas quando vemos jovens com doenças muito graves, quando vemos um filho de 18 anos partir com grande sofrimento à frente de um pai… Ver o sofrimento dos pais é avassalador. E é frustrante porque não conseguimos ajudar.

As relações que se estabelecem entre nós são muito intensas. Sabemos coisas dos doentes que eles não contam em mais lado nenhum. Tornei­‑me amiga de um ou dois antigos doentes e tenho uma relação próxima e amistosa com muitos outros. Pois se nos vemos de quinze em quinze dias… Acho que me transformei numa pessoa mais calma e acima de tudo aprendi com os doentes a dar importância ao que é importante e a deitar fora o que não presta.

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