Na primeira pessoa: «Gostaria de ter sabido desde o início que a minha mãe tinha cancro»

Texto de Catarina Fernandes Martins | Fotografias de Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Um dia cheguei a casa e a minha mãe não tinha cabelo. Eu tinha 18 anos e o meu pai já não era vivo. Por medo, ela contou apenas ao meu irmão mais velho. Fui­‑me apercebendo de que algo de grave se passava mas ela nunca quis admitir que estava doente. No dia em que percebi que por debaixo do turbante não havia volume, fui eu que iniciei a conversa.

Ela nunca usou a palavra, mas deu a entender que a situação era grave. Não fiquei chateada… mas quem me dera que tivesse dito desde o início que tinha cancro da mama. O caminho da desconfiança e da dúvida é mais tortuoso porque todos os cenários são possíveis. É mais fácil saber o que está a acontecer porque deixamos de imaginar.

Quando a mãe de Ana Rainha estava já na fase terminal, o Kaiser, um boxer castanho que era o seu cão preferido, foi um grande companheiro. Ana também tem um cão. Parecido com o Kaiser.

Fez radioterapia, quimioterapia, retirou a mama, retirou os gânglios da axila, voltou a fazer quimioterapia e durante um ano parecia que a doença tinha desaparecido. Nesse ano respirámos de alívio. Depois o cancro voltou a aparecer nos ossos e de alguma forma esse foi o início do fim.

A certa altura, entre os tratamentos de quimio, fraturou o fémur e teve de ficar numa cadeira de rodas. A partir de um certo momento a quimioterapia é apenas um paliativo para amenizar as dores. O Kaiser, um boxer castanho que tínhamos na altura e que sempre foi o cão preferido da minha mãe, fez­‑lhe muita companhia.

Quando a minha mãe morreu, e tinha 22 anos e dois caminhos – resignação ou revolta. Escolhi a resignação. Depois sofri muito, mas tentei agarrar­‑me ao futuro.

Quando eu tinha 22 anos a minha mãe morreu e eu fiquei órfã. A minha sorte foi ser tão nova, estar no início da vida e não ter noção. Eu tinha dois caminhos – resignação ou revolta. Escolhi a resignação. Depois sofri muito, mas tentei agarrar­‑me ao futuro. Pensei que, estando viva, algo de bom estaria para chegar.

Passaram 14 anos. Não foi um caminho fácil, mas acreditei sempre que tinha uma carreira à espera, uma família para construir. Na minha família tenho vários casos de cancro. O meu ginecologista sabe o historial. «Não entremos em histerismo», diz sempre. Sei que é uma doença que tenho como herança, mas tento não lhe dar muita importância. A forma que tenho de me tranquilizar é fazendo os exames de diagnóstico.

É difícil aceitar esta doença, principalmente nas crianças. Não faz sentido, não tem lógica. Mas ela existe, nós não a escolhemos. Podemos é torná­‑la menos penosa para os outros.

Quando a minha mãe morreu eu quis esquecer o planeta cancro, mas há dois anos comecei a fazer voluntariado no IPO na equipa da Liga Portuguesa contra o Cancro. O processo é moroso e envolve várias avaliações. Eu queria ajudar, tinha tempo, mas restava a dúvida se tinha resolvido a morte da minha mãe dentro de mim ou se iria expor­‑me a algo com que não conseguiria lidar.

Percebi que estava resolvida e tranquila e que seria capaz de ajudar os outros. Sempre que posso, visito a ala pediátrica no IPO às segundas­‑feiras. Dá­‑me muita paz. Já me disseram que não ter filhos ajuda, mas também ajuda ver que as crianças não estão a sofrer por antecipação, que encaram a situação com grande normalidade. É difícil aceitar esta doença, principalmente nas crianças. Não faz sentido, não tem lógica. Mas ela existe, nós não a escolhemos. E podemos torná­‑la menos penosa para os outros.

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