Um 25 de Abril que demorou a chegar

O cerco ao Quartel do Carmo, a rendição de Marcello Caetano, as armas enfeitadas de cravos. A Revolução de Abril, há 50 anos, fez cair um regime enraizado, mas a notícia não chegou a todos à mesma velocidade. Para muitos dos que moravam nas aldeias de um Portugal profundo, foi um dia como tantos outros. A novidade só chegaria mais tarde. Também para alguns emigrantes portugueses. Até para aqueles que, em 1974, estavam a combater nas ex-colónias, com escasso acesso à informação, e que só puderam sentir a liberdade meses depois.

Era meio-dia, 25 de abril de 1974, quando Maria Graciosa viu o marido sair disparado de casa sem mais nada saber. Despediram-se num despacho, ainda toldados pelo medo do que aí viria. Ele era combatente no Ultramar, tinha acabado de regressar a casa de Angola para um mês de férias ao cabo de um ano na guerra, quando recebeu um telegrama a pedir que se apresentasse no Quartel da Pontinha. E foi a correr apanhar o comboio. Maria ficou num pranto, tinha 21 anos à época, nascida e criada na Gafanha do Carmo, a mais pequenina freguesia de Ílhavo, de onde nunca saiu. “Éramos pobres, não tínhamos rádio, não tínhamos televisão, não tínhamos nada. Aqui, só havia um telefone num comércio. Pensei logo que ele ia para a guerra. Tinha vindo da guerra em Angola e agora ia para a guerra em Portugal”, recorda. Àquela hora, Maria estava longe de saber, ficou consumida pela aflição, mesmo que os ventos de liberdade já tivessem começado a soprar de madrugada, noite escura ainda.

As canções que eram senhas para a revolução já se tinham feito ouvir. “E depois do adeus”, de Paulo de Carvalho, foi emitida pelos Emissores Associados de Lisboa na noite anterior. Mais tarde, “Grândola, vila morena”, de José Afonso, na Rádio Renascença. Abril chegou e os acontecimentos precipitaram-se. O cerco ao Quartel do Carmo, a rendição de Marcello Caetano, as armas enfeitadas de cravos numa revolução pacífica. Um grupo de jovens capitães levou a cabo um golpe de Estado que, em menos de 24 horas, derrubou o regime. Naquele dia, há 50 anos, os portugueses gritaram a queda da ditadura, pelas mãos do Movimento das Forças Armadas, mas não foi em uníssono. A notícia não chegaria a todos à mesma velocidade. “Só no dia 27 é que recebi um telegrama do meu marido a dizer-me para não ter medo, que estava tudo bem, que tinha sido chamado só para o caso de ser necessário”, relata Maria, de cabelos curtos e brancos como a neve. Também não soube da revolução aí, ao ler aquela mensagem telegráfica, nem sequer se lembra de a vizinhança falar no assunto. Nasceu quase cega, vê pouco, sempre foi de estar em casa. “A Gafanha também não era muito movimentada naquele tempo. E os meus pais eram muito pobres, ignorantes, não sabiam ler nem escrever. Sabia que tinha acontecido alguma coisa, mas não percebi o quê.”

Foi então que o marido regressou de Lisboa a 1 de maio e trouxe a boa nova. Fez-se uma festa com toda a família à volta da mesa. “Festejámos porque ele chegou ileso e contou que a guerra ia acabar. Batatas inteiras, muito vinho na mesa, bacalhau assado no lume da minha mãe.” Mas ele ainda voltou para Angola, só regressou de vez em janeiro de 1975. E só aí, só mesmo aí, quase nove meses passados da Revolução dos Cravos, Maria Graciosa conseguiu entender completamente o que aconteceu a 25 de abril. “Só quando ele veio da tropa é que percebi que a ditadura tinha caído mesmo. Porque ele veio mais cedo e foi uma alegria.”

Nos lugares mais distantes da metrópole, para muita gente que povoava as pequenas aldeias de um Portugal profundo, o 25 de Abril chegou mais tarde – nesse tempo, a distância para a capital era ainda maior, debaixo da escuridão de um regime. Mas chegou. E fez-se sentir. “Mudou tudo. Antigamente, a gente nem podia falar com medo de ser preso. As pessoas limitavam-se a aceitar a miséria e o que o Governo ditava, nem tínhamos bem noção. Depois veio a liberdade, tanta liberdade.”

Uma liberdade que chegou a conta-gotas, sobretudo para quem, como o marido de Maria Graciosa, ainda estava a cumprir o serviço militar obrigatório. Mais ainda para os que, no dia em que os cravos viraram ícone da revolução, estavam longe, a milhares de quilómetros, a combater nas ex-colónias, numa guerra que roubou a juventude a uma geração inteira. Contas feitas, para José Ruivo, eram mais de nove mil quilómetros. Tinha chegado a Angola em outubro de 1973, num destacamento de fuzileiros, e pouco depois já estava no leste, no Cazombo, nas margens do rio Zambeze, uma das zonas quentes do conflito. Se recuar a abril de 1974, com 21 anos acabados de fazer, a memória é tão precisa como se tudo tivesse acontecido ontem. “O 25 de abril foi um dia normal. Só soubemos dois dias depois, a 27. Estávamos no quartel e recebemos uma mensagem, por telex, do Movimento das Forças Armadas a informar que tinha havido uma revolução e para aguardarmos instruções”, rebobina. A notícia chegou com retardador. E, mesmo isso significando o fim da Guerra Colonial, não houve grandes festejos entre os militares da Marinha, à cautela, ninguém arriscava ainda exultar a liberdade, até porque pairava a incerteza sobre o que iria acontecer dali em diante. E o futuro não chegou assim tão cedo.

“O 25 de abril foi um dia normal. Só soubemos dois dias depois, a 27. Estávamos no quartel [em Angola] e recebemos uma mensagem, por telex, do Movimento das Forças Armadas”, afirma José Ruivo
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

“Só voltámos a Luanda em finais de junho e a Portugal só chegámos em maio de 1975, mais de um ano depois”, conta. No entretanto, Ruivo esteve na capital angolana a acompanhar o processo de independência do país, num período conturbado, “no meio de três movimentos – o MPLA, a FNLA e a UNITA – que se digladiavam”. Esteve a garantir a segurança do Palácio do Governador, que era então Rosa Coutinho, mais tarde do aeroporto de Luanda. E os dias caminhavam devagar, quase a caducar a esperança. Haveria, por fim, de chegar a Portugal, em 1975, a um país diferente daquele de onde tinha abalado, carregado de manifestações, de protestos sem medos nem mordaças. “Fui para o Porto e vivi essa euforia de querer ir para a rua. Mais ver do que participar.” Viveu quase um renascer, recomeçou os estudos, foi estudar Educação Física para a universidade, mas as muitas greves atravessaram-se no caminho. Acabou por voltar à vida militar num acaso, foi reintegrado na sequência de uma reestruturação dos fuzileiros em 1977. “Como se deu o 25 de Abril, acabei por sair da Marinha. Mas depois contactaram-me para voltar e aceitei. Fui para a Marinha com 18 anos e acabei aos 60 como professor exatamente onde comecei, na Escola Naval.” Hoje, depois de muitos vaivéns à conta da vida de militar, mora na Ericeira. Dos tempos idos, guarda as marcas que a linha da frente deixa para a vida e as memórias de quem viveu Abril, “o fim da guerra e da ditadura”.

A notícia da liberdade nas aldeias remotas

No mapa da história portuguesa, é preciso voltar às regiões mais remotas do país para tomar o pulso a quem, da pouca informação que recebia, só mais tarde soube que, 48 anos volvidos, o regime do Estado Novo tinha visto o fim. José Pires conta 88 anos, está em Tourém, freguesia a 30 quilómetros de Montalegre, com pouco mais de 100 habitantes, de casario em granito, cheia de campos e carvalhais, toda ladeada de montanhas, pelas serras do Gerês e do Larouco, já encaixada em Espanha. “À época, atravessava-se aqui a fronteira a salto”, atira ele.

Olhando ao ano de 1974, já havia quem tivesse televisão na aldeia raiana, o único café da terra tinha televisor. Mas obrigava a ter muitas antenas e mesmo assim não se apanhava a RTP, só canais espanhóis. A rádio chegava lá, ainda que com muitas interferências. Pelo menos é isso que dita a memória de José. Há 50 anos, trabalhava no porto de Lisboa, “nas cargas e descargas dos barcos, na estiva”, mas, por coincidência, a 25 de abril estava em Tourém de férias. “Só soube do que aconteceu já para o outro dia, a 26 de manhã”, recorda.

E prossegue. “Andava eu a semear batatas, sem saber de nada, e um vizinho que tinha conseguido ouvir na rádio veio contar-me o que se tinha passado em Lisboa. O Governo ia mudar, a ditadura tinha caído, chegara a liberdade.” A notícia correu pela terra, mas de política sabia-se pouco ou nada. “Nem entendíamos bem, não se falava do Governo. Fomos entendendo com o tempo. De repente, já se juntavam grupos de pessoas à conversa, a falar à vontade, a criticar este e aquele, antes isso não acontecia. Dizia-se que se um grupo se juntasse a falar numa esquina, vinha a PIDE e levava a gente.” Depois de tudo, José viu o país mudar, ainda trabalhou na capital até aos anos 1990, voltou com uma boa reforma. Lembra-se bem de, na terra, o povo se juntar para votar de braço no ar para a Junta de Freguesia. “A vida começou a ficar melhor, foi muito bom. Antes não havia praticamente reformas aqui na província, contavam-se os tostões, morria-se agarrado à enxada. Agora não. Todo o mundo recebe algum, mesmo que seja pouco.”

Esse era também o tempo em que se punha mãos ao trabalho ainda na meninice. Olívia Martins tinha apenas 15 anos em 1974, a mais velha de cinco irmãos, já tinha largado a escola e trabalhava numa loja de roupa, espécie de armazém que vendia fazendas a metro, levava 300 escudos (o equivalente a 57 euros hoje em dia, segundo a Pordata, 1,50 euros num câmbio direto) por mês para casa. “Era uma gaiata quando se deu o 25 de Abril”, comenta. O GPS indica Nossa Senhora das Neves, freguesia de Beja, no Baixo Alentejo. A casa típica alentejana, caiada de branco com barras amarelas, não tem número de porta e o sotaque é cerrado e cantado. “Naquela altura, não havia cá gente com carros. Íamos nos autocarros, no comboio, às vezes a pé trabalhar para a cidade, para Beja. E acordávamos muito cedo”, salienta Olívia.

“Só quando [o meu marido] veio da tropa [janeiro de 1975] é que percebi que a ditadura tinha caído mesmo. Porque ele veio mais cedo e foi uma alegria”, reconhece Maria Graciosa
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Curiosamente, em casa dos pais, onde ainda morava, até tinha televisão, “que era uma raridade”. Mas a 25 de abril levantara-se bem cedo para ir trabalhar, chegara a casa e deitara-se logo depois do jantar. Não se ligou a televisão nesse dia. “Os meus pais, que trabalhavam no monte, para latifundiários, a mesma coisa. No dia 26 de abril, apanhei a camioneta para Beja e ainda não se falava em tal. Só no final do dia é que soube.” Um tio mais interessado pela política avisou os pais já ao cair da tarde de 26 e Olívia soube assim que saiu do trabalho. “‘Então tu não sabes? Houve uma revolução em Lisboa’. Disseram-me assim. E fomos todos a pé de Beja para as Neves em ranchos, estrada fora, numa algazarra. Via-se magotes de gente na rua a conversar, já não andava tudo encolhido com medo de ser espiado. Falava-se num golpe de Estado, que os soldados iam voltar, que já não havia guerra. Os mais velhos ficaram todos contentes, não iam para o Ultramar.” Nessa noite, já a família se agarrou à televisão, “a ver as imagens dos capitães todos ao pé do Carmo, dos cravos, tudo”.

Depois veio o rebuliço, lembra-se “de ver o povo, os comunistas, a apanhar os que tinham mais, os proprietários”. E das cooperativas que se criaram, com os empregados a repartirem as terras. “Cada empregado ficava com 10, 20 hectares, uns mais, outros menos. O meu marido foi um desses casos, ficou com um terreno.” A realidade foi mudando, a pouco e pouco. “O país antes era muito pobre. Depois sentiu-se bem a diferença. Os ordenados deram em subir, o meu pai passou a ganhar um conto e 500 [cerca de 286 euros hoje em dia, quase 7,5 euros sem adaptação à inflação]. Tudo melhorou.”

Fora do país, a revolução que tardou

A verdade é que foi precisamente para ir em busca de salários dignos, de pôr comida na mesa, que os portugueses emigraram aos milhares nos tempos de Salazar (e nos anos em que o regime prolongou a repressão já após a morte do ditador). Muitos emigrantes assistiram à revolução de longe, outros só mais tarde vieram a saber. Manuel Gandarinho, 91 anos, voltou há coisa de três décadas para Portugal para viver a reforma. Anda a passear-se pelo Centro Comunitário da Gafanha do Carmo de boina na cabeça. E conta que estava em França quando recebeu um telefonema a 26 de abril de 1974. “A minha falecida mulher estava cá, em Portugal, viu o que se passou em Lisboa na televisão, mas não me quis telefonar logo. Esperou pelo dia seguinte e eu soube de tudo o que aconteceu por ela.” Mas recuemos nesta história. Manuel morava na Gafanha da Encarnação, desde os 13 anos que trabalhava, nas salinas no verão, na seca do bacalhau no inverno. Tinha-se livrado da tropa e aos 33 anos decidiu fugir à miséria e atravessar a salto a fronteira para Espanha, de onde seguiu de autocarro e depois de comboio para Paris. Levou oito dias para chegar, em 1966. E por lá ficou, trabalhou quase a vida toda em França, numa fábrica.

Naquele dia de abril, ao ouvir a mulher ainda receosa, primeiro, ficou aflito, na desconfiança, depois o cheiro a liberdade começou a entranhar-se e o futuro a desenhar-se mais e mais risonho. Poucos meses depois, no Natal, veio a Portugal “tirar o passaporte” e em 1975 já conseguiu levar a família para França. “Dou muito valor à liberdade, se dou. Quando cheguei cá, depois do 25 de Abril, senti muita diferença. Antes, quem falasse contra o Estado já nem via sol nem lua, já não aparecia mais. E quando cheguei, podia falar o que quisesse, andar por onde quisesse. Que liberdade que senti. Só decidi continuar em França porque já tinha trabalho e aqui ainda era muito difícil viver.”

“Quando cheguei cá, depois do 25 de Abril, senti muita diferença. Antes, quem falasse contra o Estado já nem via sol nem lua, já não aparecia mais. Agora, podia falar o que quisesse, andar por onde quisesse”, assegura Manuel Gandarinho
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Aquele ano até pode ter sido um momento de viragem num país tanto tempo silenciado, mas não o foi logo para todos. Longe disso. Neste ponto, voltemos às antigas colónias, onde tantos homens ainda continuavam a combater “nessa guerra maldita”. As palavras são de António Santos, 73 anos, que ainda estava a servir na Guiné-Bissau quando chegou Abril. É ele quem puxa a cassete atrás. Em 1972, já levava um ano de tropa, tinha passado por quatro quartéis, estava convencido de que já nem ia à guerra. “Um dia, estava a almoçar quando veio um oficial chamar por quatro números, era eu e mais três. Percebi logo que era para ir, foi numa altura em que a guerra apertou”, explica. E o medo a agarrar-se à pele. Era mecânico na vida civil, já fazia uns biscates antes da recruta, foi mecânico também na vida militar. Na Guiné, começou logo a carregar mortos, sem tempo para lamúrias, numa mágoa que não o larga.

Passou 17 meses no mato com o destacamento, na manutenção às viaturas, num lugar de acesos tiroteios. E foi quando a sua unidade já estava numa zona próxima de Bissau que, em 1974, viu os oficiais fazerem descer a bandeira, “ficou a meia haste”. “Ficámos todos espantados com aquilo, mas ninguém nos disse nada, não sabíamos o que se estava a passar. Nem sequer tínhamos rádio, estávamos desligados do Mundo, a única informação que íamos recebendo era pelos aerogramas da família, a minha mãe escrevia-me todas as semanas.” Só ao terceiro dia, a 28 de abril, é que um comandante os reuniu e lhes contou o sucedido. Naquela hora, houve abraços e festejos, numa alegria difícil de conter. “Liberdade, liberdade, liberdade! Ficámos felizes, mas ainda lá estávamos, que liberdade era aquela? Senti uma grande esperança, sabia que estava a acabar, só que a guerra não parou logo, ainda houve muito tiroteio, morreu muita gente por lá no pós-25 de Abril.”

Desde então, as munições foram acabando, o abastecimento de comida também. “A nossa tropa ainda ficou a salvaguardar Bissau”, diz. E quis o destino que a 1 de julho acabasse ferido. Uma arca, que funcionava a petróleo, explodiu no pavilhão onde comiam, António foi apanhado pela explosão, ficou com o corpo todo queimado, mãos, braços, pernas, costas. Achou que já não sobrevivia. Passou dez dias no hospital em Bissau, veio depois para Lisboa, teve de ir ao bloco cirúrgico, esteve um ano internado. Só regressou a casa dos pais, em Santa Maria da Feira, aos 24 anos, já no verão de 1975, carregado de feridas e ligaduras. Nunca mais voltou à vida militar, dedicou-se à mecânica, é hoje membro da Associação dos Deficientes das Forças Armadas. “Só quando cheguei a casa é que vi o que era a liberdade, é que notei verdadeiramente as diferenças, senti-me num país livre. O 25 de Abril demorou a chegar para mim, mas quando chegou senti-me muito feliz.”