Os golos (de bicicleta ou no preconceito) que a minha filha ainda vai marcar

Notícias Magazine

O vídeo estava preparado desde ontem à noite. Vídeos. Eram três. Escolhi um, depois outro. E mais outro ainda. Três links diferentes no YouTube. As imagens eram as mesmas, os mesmos ângulos, as mesmas repetições, a mesma personagem, o mesmo momento histórico. O que mudava era o espanto. Os comentários. As vozes. Os gritos.

Em árabe, italiano e espanhol – também encontrei em português, mas não era tão efusivo – três jornalistas soltavam a voz para espelhar o que tinham acabado de ver. No pequeno ecrã do telemóvel, repetido sucessivas vezes, Cristiano Ronaldo voava quase um metro e meio acima da relva para desferir aquele fantástico pontapé de bicicleta numa bola a 2,38 metros de altura, contas do jornal espanhol a Marca.

E eles gritavam. Também devem ter esperneado e esbracejado e passado a mão na cabeça como Zidane quando viu aquilo. As imagens correram mundo e correram telemóveis e computadores e televisões e tablets.

No meu telemóvel estavam preparadas desde ontem à noite. Para bastar apenas um toque e poder mostrá-las. Eu estava histérico e queria tanto falar do golo histórico. Mas a paciência é uma virtude e eu lá tive de conter o entusiasmo e esperar pela manhã. É que acordar uma criança de 5 anos para ver um pontapé de bicicleta feito golo num jogo da Champions é bem capaz de ser considerado maus-tratos.

A minha filha Carolina começou há duas semanas a jogar futebol. A ir aos treinos de futebol da escola dela. Disse à mãe que via os amigos a jogar no recreio e que eles pareciam tão divertidos que ela queria experimentar também. Ora, se era bom para eles, também devia ser para ela. E assim foi.

A minha mulher falou com a professora e daí aos primeiros 45 minutos com os amigos num campo, sob orientações do mister, foi coisa de dias. Foi bem recebida, deu chutos na bola, tentou ziguezaguear entre pinos coloridos, rematou à baliza, fez alongamentos, ficou cansada. À noite, contou como foi. E adormeceu mais cedo.

No segundo treino, a rotina repetiu-se. Correu, chutou, ziguezagueou, tentou dominar o esférico, caiu, alongou, cansou-se. E riu. Ela e os amigos. Eu estava lá a ver e fiquei com a ideia de que aquilo é capaz de não ser o talento escondido da rapariga, mas isso pouco importa. Eu estava tão inchado de orgulho que nem vi se ela pode ser um portento ou não. Ela estava feliz. E isso bastava-me.

Comparada com os companheiros, que já começaram os treinos há meses, a Carolina está uns bons passos atrás. Mas em nenhum momento comentou ou perguntou por que raio não havia mais raparigas.

E em nenhum momento, nesses dias ou nos outros, lhe dissemos que há menos raparigas do que rapazes a jogar futebol, que elas ainda são uma raridade, sobretudo nestas idades, e que o facto de ser a única menina do jardim-de-infância a querer dar chutos com eles faz dela uma pioneira. Para já, queremos é que ela se divirta.

Mais importante do que abrir caminhos, é preciso que se ria. E que considere normal jogar à bola entre meninos. Nesta manhã a minha filha viu um dos mais belos momentos que o futebol nos pode dar.

E, se se lembrar disso, um dia, quando lhe perguntarem onde estava quando viu o golo que levou os adeptos da Juventus, no seu estádio, a aplaudir de pé Cristiano Ronaldo, pode ser que responda que estava em casa, acabada de acordar e que foi o pai que lhe mostrou – várias vezes. Eu vou lembrar-me. Disso e dos tempos em que ela começou a jogar futebol e isso, para a Carolina, era tão natural que não tinha género.

Não era coisa de menino nem de menina. Era só uma coisa divertida. O jogo, tal como a paixão por ele. Se tudo correr bem, dentro de uns anos eu e a minha filha vamos vibrar com pontapés de bicicleta de jogadoras de futebol. Mesmo que a Carolina não se torne a melhor do mundo.