O embondeiro que atrasou a morte

Notícias Magazine

Para chegar à aldeia angolana de Quiminha é preciso seguir uma picada de terra vermelha à saída de Catete, na província do Bengo, e cumprir uma boa hora de solavancos pelo meio do mato. A povoação nasceu nos primeiros anos da Guerra Colonial para albergar os trabalhadores portugueses que construíam a barragem do rio Zenza, um quilómetro abaixo. Hoje, preserva a mesma vintena de casas térreas, mas estão todas em avançado estado de degradação. As fachadas perderam a pintura e puseram a descoberto o tijolo, as janelas há muito que não têm vidros, portas são um conceito relativo que varia entre a tábua de madeira, o pano ou em entrançado de folhas de palma.

No fim da única rua de tanta pobreza há um enorme embondeiro e é inevitavelmente ali que o povo desagua nas horas de maior calor. Os embondeiros são árvores que já nascem velhas, os africanos costumam dizer que elas são mais sábias do que qualquer soba. Há, aliás, uma lenda sobre o embondeiro: uma vez, os deuses resolveram castigar a floresta e viraram o arvoredo ao contrário, fazendo das raízes os ramos. Essa penitência arbórea é, no entanto, o consolo dos humanos. O tronco é tão grande, a folhagem tão densa, que nenhuma outra sombra consegue disfarçar tão bem a inclemência do sol africano.

No caso da Quiminha, a reunião de habitantes debaixo daquela copa tem outra explicação que não a sombra. É que o embondeiro da aldeia é a árvore mais alta de todo o planalto. Então, no tronco frondoso, cada homem espetou o seu prego, e ao prego prendeu um pequeno saco, bordado em palha. As bolsas guardam um tesouro inesperado: os telemóveis de toda a povoação. Aquele, afinal, é o único sítio com rede que existe em quilómetros. Então o povo vem ali passar os dias, à espera que os telefones toquem, ou que as notícias do mundo cheguem pelo Facebook. As tardes comunitárias da Quiminha são assim: o povo na mesma sombra, silencioso e paciente, e a esperança de que o embondeiro tenha novidades para contar.

Às vezes o vento muda, e então perde-se o sinal. Chega a passar-se um mês de mudez florestal, mas nem por isso o povo arreda pé da sombra do embondeiro. Pode ser que a árvore chame – e quando se decidir a fazê-lo é bom que esteja alguém preparado para responder. «Parece que calha sempre que há atentados terroristas no mundo», conta-me a Mamã Florência, que é a mulher mais velha da aldeia, tem 72 anos e um Huawei de terceira geração. «Já os mortos estavam enterrados quando soubemos dos ataques em Paris, ou em Bruxelas. Perdemos a aflição.»

Na semana passada, quando visitei a aldeia angolana, havia nova aflição perdida. O embondeiro andava há uns bons tempos agitado com vento do Sul e atrasou-se dez dias a contar que tinha havido um ataque terrorista em Londres. Mamã Florência disse logo que não valia a pena ficar a chorar de indignação por causa de um carro largado sobre a Ponte de Westminster. «A vida já continuou há dez dias», sentenciou a velha, e toda a gente foi sentar-se na sombra, à espera que o telefone tocasse outra vez.

Se o medo é a vitória do terrorismo, então há numa árvore africana um dos maiores aliados no combate ao extremismo islâmico. Um embondeiro que atrasa a morte também é um embondeiro que faz avançar a vida.