O mundo suspenso de um subúrbio americano

Notícias Magazine

Nestas eleições americanas temos o mundo contemporâneo visto ao espelho.

Vistas de fora – e, a bem dizer, também de dentro – estas são as eleições americanas em que mais está à vista o mundo como hoje o conhecemos. Tão violento e cru. Complexo e pós-pós-moderno. Sofisticado e boçal. Nunca a América esteve tão à flor da pele. Os americanos, que estão normalmente habituados ao maniqueísmo simples que divide a esquerda da direita, já não conseguem distinguir nada. E os valores que tornavam alguém um conservador ou um democrata estão todos trocados.

No fundo, ninguém sabe quem pode ganhar. Há os que têm esperança em Hillary Clinton mas têm medo de que ela perca. Os que vão votar Donald Trump com sentimentos negativos: raiva, medo, aborrecimento… Mesmo não sabendo o que aí poderá vir. Os que foram deixados para trás por uma sociedade competitiva e cega – e que culpam o sistema, os imigrantes, as deslocalizações. Não há maior contradição do que a destes últimos. Blue collars, trabalhadores secundários, vão votar num símbolo do que atacam, o multimilionário e guru do empreendedorismo, cuja frase mais marcante é «You’re fired» (estás despedido).

Contradições destas fazem bons filmes americanos, mas podem ter consequências políticas devastadoras. Trump, o candidato mais politicamente incorreto de sempre, não se coíbe de parecer tonto ou idiota. Aposta precisamente na revanche do que nos trouxe até aqui, as que julgávamos ser o progresso e teve tantas consequências negativas. Aposta no «mas» do raciocínio egoísta dos que sabem o que deve ser dito e feito, mas preferiam que fosse de uma maneira que mais os beneficiasse. O contrário da regra de ouro: em vez de se porem nos sapatos do outro, tentam defender a sua posição, dê por onde der.
Do outro lado há uma campanha que aposta na modernidade e na inteligência. Nos ideais humanistas e iluministas – a começar pela igualdade feminina. Hillary Clinton é o símbolo dessa modernidade, a mulher que quebrou o teto de vidro. Ou, como dizia Michelle Obama, no fabuloso discurso desta semana: «Alguém que percebe que os assuntos da nossa nação não são a preto e branco nem podem ser sumarizados em 140 carateres.»

E agora? Depende. Tudo depende de quem for votar, e como for votar. Tudo isto se complexifica por causa do intrincado sistema eleitoral americano – que centra as eleições em determinados estados dançarinos, indecisos. Quando vemos os candidatos a insistir em determinados discursos, sabemos que isso acontece porque foi descoberta pelos especialistas em estatísticas uma bolsa de eleitores nos distritos mais indecisos, e que essa bolsa, diagnosticada social, económica e politicamente, será sensível a esse discurso.

É por tudo isto que, já sabemos, as sondagens nacionais valem o que valem – valem pouco. E que aquilo que se convencionou chamar os momentum de uma campanha, os clímax que levam a que os eleitores voltem a olhar para essa campanha de forma entusiasmada, também têm interesse cada vez mais relativo. Quando tudo depende de quem vai votar no oitavo distrito da Pensilvânia, que tem sido azul e vermelho nos últimos dez anos, e o que pensam de Trump ou Hillary os trabalhadores fabris do Bucks County, a noroeste de Filadélfia… O mundo inteiro suspenso por um subúrbio americano.

 

[Publicado originalmente na edição de 31 de julho de 2016]