Nascidos a 29 de fevereiro

Quem nasceu nesse dia sabe o que é lidar de perto com um aniversário que não pode ser celebrado como os restantes aniversários. As dúvidas e questões de quem não entende como é possível ser diferente. O segredo é encarar a situação com a leveza de quem se diz único.

Quando Andreia Filipa Gil engravidou do primeiro filho, em 2019, olhou para o calendário e viu um pormenor que não lhe passou despercebido: o dia 29 de fevereiro de 2020. Esse dia raro que só acontece a cada quatro anos e que poucos ostentam como dia de aniversário. “Nunca acreditei que o meu filho pudesse nascer a 29. Pensei que não iria acontecer”, confessa. E os médicos foram-lhe confortando os receios, garantindo que o parto do bebé seria marcado para 10 de março. “Respirei de alívio”, lembra. Mas os planos saíram furados. A 28 de fevereiro, Andreia deixou de sentir o movimento normal da criança e decidiu ir às urgências. Revelaram-lhe que tinha pouco líquido e que o melhor seria falar com a médica que a acompanhava para que fosse tomada uma decisão. “Ela confirmou o diagnóstico e disse que o parto teria de ser feito.” Um dia depois, nasceu o Simão. Às 10h58 de 29 de fevereiro, no Hospital Lusíadas, em Lisboa. Não foi caso único. Naquele dia foram mais quatro os bebés companheiros de jornada, só naquela unidade privada de saúde.

Andreia, 32 anos, e o marido, Danilo, 31, conversaram várias vezes sobre a possibilidade que imaginavam rara de que Simão pudesse conhecer o Mundo em data bissexta. “Até cheguei a fazer apostas com a minha família de que o nascimento seria a 29. Ganhei um jantar”, conta sorridente Danilo, militar da GNR. Porque tudo estava previsto apenas para o mês seguinte, e as coisas se desenrolaram imprevisíveis e rápidas, foi preciso enviar fotografias de Simão aos mais próximos para que acreditassem na novidade. “Foi a forma que tivemos para que soubessem das boas notícias”, recorda o casal de Abrantes, agora a residir em Sintra.

Simão nasceu em 2020 e vai comemorar pela primeira vez o aniversário a 29 de fevereiro. Os pais, Danilo e Andreia, e a irmã, Sara, estão a preparar-lhe muitas surpresas e um jantar especial
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

O pequeno Simão ainda não tem noção da singularidade que lhe marca o aniversário. “Às vezes falamos com ele sobre o assunto e fica muito espantado, é muito cedo para compreender. Mas acreditamos que quando perceber irá achar piada à situação”, confiam os pais. Até agora, a efeméride foi sempre assinalada a 1 de março, com festa a preceito e divertimento garantido. Este ano será diferente. “Afinal, será o primeiro verdadeiro aniversário dele.” Está previsto um jantar especial em casa no próprio dia 29, depois de um dia de escolinha também ele especial, na presença dos amigos e com um insuflável já assegurado para ajudar na folia. O bolo de anos terá ainda uma vela com o número um, a lembrar para sempre o dia em que Simão, que entretanto ganhou a companhia de Sara, a irmã mais nova, pôde festejar pela primeira vez de forma certeira. “Será um momento diferente, sem dúvida”, preveem Andreia e Danilo.

Fardo ou nem tanto

No próximo dia 29 estará também em festa Marta Ramalho Moutinho. Será o seu 44.º aniversário. “Quer dizer, na prática farei 11 anos”, brinca esta gestora do ramo automóvel de Torres Novas, em alusão ao número de vezes em que realmente conseguiu celebrar o dia – o seu dia – em grande.

“Podia acabar por se tornar um fardo”, admite, ela que faz questão de nunca deixar para março o passar de mais uma celebração de vida em anos não bissextos. “Organizo sempre qualquer coisa a 28 de fevereiro. Porque é o mês em que nasci, não sou de março”, explica. Afinal, como se consegue lidar com uma carga que fica para a vida toda? “Com muita leveza, só assim é possível”, garante.

Está acostumada a ouvir “muitas piadas”. E a responder a perguntas, muitas perguntas, de quem não percebe o que é isso de só de quatro em quatro anos ter dia certo para comemorar. “Os amigos acham graça, questionam como faço, como encaro a situação, etc. É sempre um bom assunto desbloqueador de conversas”, destaca. E até há quem desconfie. “Já me pediram para mostrar o cartão de cidadão para confirmar se é verdade.”

Quando o dia 29 de fevereiro acontece, várias coisas são certas na rotina de Marta. “Primeiro, meto logo folga no trabalho. Depois, procuro fazer uma grande festa, porque a vida deve ser celebrada”, descreve. “Em 2020 juntei muitos convidados no meu 40.º aniversário. Este ano estou num momento mais zen e vou aproveitar para tirar uns dias e descansar”, antecipa.

O entusiasmo de Marta Ramalho Moutinho pelo 29 de fevereiro é tal que, “há cerca de dez anos”, criou um grupo no Facebook exclusivamente dedicado aos nascidos nesse dia. O entusiasmo inicial foi algum, depois a interação foi esmorecendo. “Curiosamente, nos últimos tempos temos tido muita procura de brasileiros, são entre 70 a 80% dos membros”, aponta. Chegou a ser ponderado um encontro, mas pouco depois surgiu a pandemia e adiou sine die a iniciativa. “É um assunto que não está esquecido.”

Enquanto a ideia não ganha forma, Portugal continua a não seguir o exemplo dos vizinhos espanhóis, que contam com o Club Mundial de los Bisiextos, que a cada quatro anos reúne centenas de aniversariantes espalhados pelo país para juntos comemorarem o aniversário e cantarem em uníssono os parabéns a você à roda de um grande bolo comum. A nível internacional, destacou-se também a Honor Society of Leap Year Day Babies, uma associação global que existiu entre 1988 e 2016 (anos bissextos, claro está) e chegou a juntar 11 mil pessoas de todos os pontos do Globo. Apesar de já ter encerrado a atividade, muitos dos seus associados lançaram projetos nas redes sociais com o objetivo de captarem cada vez mais celebrantes.

Do tempo dos romanos

O 29 de fevereiro tem origem no Império Romano e na criação do calendário juliano (assim batizado para homenagear o imperador Júlio César), o qual foi equilibrado com o período exato que o planeta Terra demora a completar uma volta ao Sol: 365 dias, cinco horas, 48 minutos e 36 segundos. Originalmente, percebeu-se que tal movimento demoraria somente três anos e apenas com o decorrer dos séculos a ciência acertou para quatro anos estas sobras de tempo, que acumulam exatamente 24 horas, o tal dia bissexto inserido em definitivo de forma correta no calendário gregoriano, criado em 1582 pelo Papa Gregório XIII e ainda atualmente em vigor.

Adriano Reis gosta de ouvir o filho dizer-lhe que “é simpático” ter um pai mais novo do que ele, uma vez que, neste ano, o sommelier celebrará o aniversário no dia certo pela 13.ª vez – completa 52 anos
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Esta história conhece-a Adriano Reis, que cumprirá dia 29 o 52.º aniversário. “Ou melhor, o 13.º”, corrige, entre sorrisos de quem está acostumado a lidar com o tema de forma bem-humorada. Sommelier no restaurante O Mapa, em Montemor-o-Novo, este antigo gráfico que trocou Lisboa pela tranquilidade do Alentejo nasceu em Benguela, Angola. “O meu parto foi no meio do mato”, realça. Ficou-lhe para sempre gravado. “É um dia de inverdade, para todos os efeitos”, volta a brincar. “Quando era miúdo, pensava muitas vezes o que raio tinha acontecido para não poder celebrar todos os anos como as outras pessoas.” Mas foi-se acostumando, até às confusões feitas pelos amigos. “Uns ligam-me a dar os parabéns a 28 de fevereiro, outros a 1 de março. Para mim tanto faz, até sou um pouco desligado da data, para ser sincero”, diz.

A cada ano bissexto, Adriano faz o que lhe dá maior prazer na vida. “Estou com a família por entre boa gastronomia e bons vinhos”, desfia. Em 2024, os planos não estão fechados, certo é que passam “por um passeio entre herdades” como tanto aprecia. E certamente irá ouvir a ‘boca’ habitual do filho, que encara com fair play, quando lhe diz que “é simpático” ter um pai mais novo do que ele. “É um dia tão especial que devia ser erguido um pequeno monumento aos aniversariantes de 29 de fevereiro”, ironiza.

Festas surpresa

Miguel Prata também irá celebrar 52 anos no próximo dia 29. Gestor de projetos numa empresa de audiovisuais, sempre encarou a data “para o lado da brincadeira”. É assim, por exemplo, quando lhe perguntam em que dia devem exatamente ligar a dar os parabéns ou oferecer um presente sempre que não há 29 de fevereiro no calendário. “Digo sempre que podem telefonar duas vezes e dar duas prendas, uma a 28 de fevereiro, outra a 1 de março”, afirma Miguel, que na sua casa em Santa Cruz do Bispo, concelho de Matosinhos, espera quinta-feira, dia 29, a companhia dos seus. E, quem sabe, algo mais, como já lhe aconteceu sem que com isso contasse.

Miguel Prata brinca com o facto de ter nascido numa data que só existe de quatro em quatro anos: “Digo sempre que podem telefonar duas vezes e dar duas prendas, uma a 28 de fevereiro, outra a 1 de março”
(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

“Nos anos bissextos gosto sempre de algo diferente. Cheguei a ser surpreendido por festas surpresa que me deixaram emocionado”, recorda. Uma forma de deixar na memória uma efeméride que não merece ser passada para segundo plano. “Afinal, os outros têm garantido o seu aniversário a vida toda, eu apenas de quatro em quatro anos”, sublinha. Uma sina que poucos carregam. Mas sempre com orgulho.