A noção amarga da tragédia

Notícias Magazine

Aqui na redação havia um estranho silêncio hoje de ma­nhã. Talvez não fosse consciente, talvez não fosse sequer pensa­do. Esta é a redação de uma revista cujos jornalistas não cobrem a atualidade política – ou judicial, já agora. Quando vão atrás des­ses temas é sempre para explicar melhor, ou para perceber como é que eles interferem na nossa vida social, ou são causa ou conse­quência daquilo a que chamamos o comportamento humano. Sor­te, porque estes jornalistas não têm agora de se confrontar com a loucura que tomou conta do país, entre os segredos de justiça que­brados por quem a justiça escolhe, as dificuldades para informar quando se sabe pouco ou nada e quase tudo é especulação, num terreno minado por vários agentes. Ou azar, porque, no fundo, há sempre nas razões que levam um jornalista a escolher esta profis­são uma vontade de estar onde está a notícia – seja uma tragédia ou uma revolução – e uma missão de encontrar a verdade – seja numa curiosidade pessoal ou num assomo de justiceiro.

A distância a que a redação assistiu aos acontecimentos des­ta semana não foi, obviamente, suficiente para permitir que não fôssemos todos afetados por eles. O silêncio desta manhã – escre­vo no dia seguinte a ter sido decretada a prisão preventiva a José Sócrates – é primo do olhar atónito com que, antes, no café da minha rua, se olhava para TV. Nem um esgar, nem uma anedota – que já as há a circular, mas raras, como a solenidade do momento exige. A solenidade no café como na redação. Como se nos tivesse qualquer coisa acontecido de mal, e a todos. Porque qualquer coi­sa afetou-nos, de facto, a todos. E não foi pouco.

Depois de anos de ódios e gostos públicos que José Sócra­tes sempre despertou, foi estranho verificar um certo amainar das paixões neste período após a sua detenção pela justiça, na sex­ta-feira da semana passada. Como se um bom senso tivesse tomado conta das pessoas. Como se o que aconteceu agora fosse a sério, depois de anos em que gostar ou não de Sócrates se tornou uma espécie de clubite. E isso aconteceu sobretudo entre aqueles com quem trocámos impressões na rua, a vox populi – que entre os comentadores continuou a corda esticada.

Sem ânimos exaltados, a incredulidade deu lugar à noção de tragédia do que está a acontecer: ter um ex-primeiro-ministro de­tido por suspeita de crimes que põem em causa o tempo que nos governou. E com uma prisão de supetão e uma prisão preventiva sem explicações. Tudo isso aumentou o choque, claro. Mas o que interessa, e é disso que temos noção coletiva, é que, qualquer que seja o desfecho, será sempre um drama coletivo o que nos terá acontecido: se for provado, será o da traição ao povo por um polí­tico em quem confiou, se não for, será a traição ao povo da sua jus­tiça. Ou seja, nada diminui a tragédia.

Portugal é um país pequeno, os portugueses são hoje um po­vo frágil – como dizia o embaixador Francisco Seixas da Costa na sua crónica no Diário Económico nesta terça-feira. Um povo depen­dente do elogio alheio, como provam as milhares de histórias que só são notícia cá dentro quando o são lá fora. Dependemos tanto do elogio externo porque não temos confiança nas nossas capaci­dades. Em qualquer dos casos, uma história destas, que nos muda a história – vai marcar-nos para sempre. E por muitas razões, que só serão apuradas no final. Para já, temos o silêncio. E a noção amarga da tragédia.

Publicado originalmente na edição de 30 de novembro de 2014