Margarida Rebelo Pinto

O amor lava e cozinha


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Sempre fui apaixonada por grandes histórias de amor: Tristão e Isolda, Pedro e Inês, Soror Mariana e Noel, Camilo e Ana, Sá Carneiro e Snu. As que mais me fascinam são aquelas em que os casais estiverem juntos durante anos ou décadas, muito mais interessantes do que as breves e fatídicas, como Romeu e Julieta, com os amantes separados pela vida. Não há nada mais fácil do que amar um ideal, uma projeção. O objeto amado é desenhado pelo nosso desejo e pela nossa imaginação com o rigor de um aparo de tinta da China. Assim é fácil amar. Difícil é amar no dia a dia, na repetição da rotina que nos pesa. Difícil é não nos cansarmos do outro à força de estar sempre ali à mão, tão perto, demasiado perto.

Durante mais de dez anos, a escritora Anaïs Nin viveu uma relação de desvairada paixão e profunda cumplicidade intelectual com o escritor americano Henry Miller. A correspondência trocada entre os amantes encontra-se reunida e publicada em vários livros. O género epistolar é um dos mais belos, porque nele não cabe a mentira. Podemos ficcionar nos romances, laborar em mensagens ardilosamente encriptadas na poesia, mas ninguém mente em missivas amorosas, porque é o nosso coração em palavras que lá deixamos. Por outro lado, são exercícios eficazes de autoanálise e tentativas de explicar ao outro o que nos vai na alma, sempre com a eterna e tantas vezes vã esperança de que o seu coração oiça os nossos apelos.

Aprendi muito com a Anaïs, quer como escritora, quer como mulher. Considero-a uma das feministas mais importantes e inteligentes da eterna história da libertação da mulher por ser totalmente livre. As suas palavras e ações eram sempre praticadas em consciente e profundo sentido de liberdade. Mas Anaïs era intensa e avassaladora. Em Clichy, onde Henry viveu alguns anos, escreveu-lhe muitas cartas. Há um excerto que releio com frequência, pela sua honestidade e coragem.

“Pensa nisto Anaïs, para simplificar…Quando alguém faz sacrifícios por outrem, como tu tens feito por mim, haverá sempre uma margem de ‘ingratidão’ e de ‘dureza’, de ‘incompreensão’ da qual sofrerás. Nunca conseguirei compensar tudo o que tens feito, nunca. E isso produz um pequeno e secreto ressentimento, pelo qual ninguém é responsável. Pagamos multas pelos sacrifícios que fazemos, por mais irónico que possa parecer (…) Não faças um dependente do outro, como tão cruelmente pretendeste, porque eu não acredito nisso (…) Peço-te que esqueças as tuas responsabilidades autoimpostas. Experimenta-me por um outro lado. Vê se te falho. Diz-me honestamente: Não posso fazer mais nada por ti, Henry. E então, vê o que acontece.”

Anaïs, a paladina da liberdade, ficou refém da paixão que lhe tomou conta de quase tudo e quis aprisionar Henry na teia que a traiu. As pessoas apaixonadas funcionam com o cérebro desligado, perdem a noção do tempo e do espaço, agem de forma irresponsável e tantas vezes desastrosa. A paixão cega-nos, consome-nos e depois abandona-nos.

Vale a pena? Quase nunca. Ficam memórias belas e agridoces que o tempo irá inevitavelmente roubar. Os poetas e escritores usam-nas para enganar a preguiça do ofício, mas é apenas o que resta dos escombros enferrujados, palavras que mais tarde irão servir de magro consolo a outros amantes desvairados. A paixão passa, o amor lava e cozinha.