Pintar as unhas ou usar maquilhagem. A sociedade ainda é “quadrada” com os homens?

"Não é expectável ver um homem com unhas longas e pintadas com cores garridas. Mas já se aceita de forma geral que cuidem da pele. E também já vemos muitos homens a vestirem-se de forma menos convencional e mais arrojada", reconhece a socióloga Ana Brandão

Parece haver uma tendência para um cuidado cada vez maior com a imagem por parte deles. Mas o que é considerado próprio ou impróprio para cada género, e os preconceitos associados a certas formas de expressão, ainda é um travão à mudança social.

Pintar as unhas, o cabelo, vestir uma roupa ousada, maquilhar-se, o universo tipicamente feminino tem vindo a furar e a entrar no mundo masculino. Mas ainda a custo. Os exemplos mediáticos até vão surgindo, com figuras como o britânico Harry Styles a envergar tops coloridos com lantejoulas e decotes pronunciados, a usar unhas de cores garridas ou maquilhagem com glitter. Só que o mundo do espetáculo tem uma aura diferente, os artistas têm uma espécie de benesse no que toca à excentricidade, e a realidade é que, socialmente, entre as pessoas comuns, os homens que arriscam sair da caixa ainda são olhados de lado. “Tem a ver com o que em cada sociedade é considerado próprio ou impróprio para cada género. E que se vai alterando em função do período histórico”, comenta Ana Brandão, socióloga e investigadora na Universidade do Minho. Se recuarmos alguns séculos, “era comum os rapazes vestirem-se com saias até certa idade e há até períodos históricos em que a maquilhagem fazia parte da masculinidade nas classes mais altas”.

Cristina Duarte, socióloga que tem dedicado atenção aos temas da moda, investigadora e professora na Universidade da Beira Interior, tende a concordar e lembra precisamente que os homens nem sempre se vestiram de forma igual. “A diferença é que antes não copiavam as mulheres. Agora já o fazem”, refere. E o que causa confronto societal, sublinha, “diz respeito sobretudo aos papéis de género”. É certo que os tempos mudam, cada época é diferente, mas há um padrão transversal, segundo Ana Brandão: “É habitual haver sempre alguma distinção entre géneros, não existe nenhuma sociedade onde ela não exista”. Olhando aos tempos atuais e à sociedade ocidental, a docente faz um paralelismo para simplificar. “A utilização das calças por mulheres também foi um escândalo a partir do século XX, causou uma grande celeuma na altura. Foi um símbolo de afirmação até. Podemos comparar esse escândalo com a situação atual, quando vemos um homem usar uma saia ou um top, porque não é considerado próprio para os homens.”

Apesar destas construções sociais e culturais associadas a cada género, à masculinidade e à feminilidade, hoje parece haver uma tendência óbvia para um cuidado cada vez maior com a imagem por parte dos homens (embora sempre tenha existido, de certa forma, veja-se o pente no bolso de trás das calças noutras décadas para pentear os cabelos mais teimosos), para um certo esbatimento das diferenças. Já se interessam por cuidados da pele, das unhas, como salienta Ana Brandão.

“Ainda que haja limitações. Não é expectável ver um homem com unhas longas e pintadas com cores garridas. Mas já se aceita de forma geral que cuidem da pele. E também já vemos muitos homens a vestirem-se de forma menos convencional e mais arrojada.” Aqui, há que fazer uma ressalva, é que as distinções nas formas como nos apresentamos não se limitam ao género. “Também há diferenças entre o que se espera de uma pessoa mais jovem ou mais velha, por exemplo.”

Os preconceitos, a desconstrução

Contudo, naquilo que separa homens e mulheres entram-se ainda outras condicionantes sociais de peso, os preconceitos, segundo Joana Amen, psicóloga e membro da direção da Delegação Regional dos Açores da Ordem dos Psicólogos. “Estamos a falar de expressão de género, que é diferente de orientação sexual, do sexo pelo qual me sinto atraído, ou de identidade de género, o género com que me identifico. O problema é que isto é, muitas vezes, confundido. Por exemplo, há a ideia de que se se veste de forma mais efeminada é porque deve ser homossexual. E a forma como me visto e expresso, seja mais masculina, feminina ou andrógina, não diz nada sobre mim. Se um homem pinta as unhas, isso não diz nada sobre a sua identidade de género ou orientação sexual.” Ainda que, muitas vezes, a utilização de certas peças de vestuário ou bijuteria seja usada como instrumento político, com significado simbólico, por pessoas LGBTI+.

Para a psicóloga que trabalha com jovens, “o machismo é tão negativo para as mulheres como para os homens”. “Mas, felizmente, vejo que entre os jovens isto começa a ser uma não questão. Se um rapaz numa escola secundária pinta as unhas, já pouca gente associa isso à homossexualidade. Têm noção que isto não os define. Claro que ainda há caminho a fazer, ainda há bullying, mas têm sido dados passos.” Joana Amen reconhece, porém, que “tudo o que seja fora da norma, tudo o que é diferente ainda tende a ser visto como negativo, temos muito medo do que é diferente”. E a pressão social é uma realidade, “há um pacto que não assinámos, mas sob o qual vivemos, que dificulta a afirmação da diferença”.

Objetivamente, como explica a socióloga Ana Brandão, “os homens não estão impedidos de usar vestidos, colares ou maquilhagem, há é um conjunto de normas e expectativas sociais que continuam a ter peso e a restringir esses comportamentos, porque quando se ultrapassam estas fronteiras, corre-se o risco de se ser estigmatizado”. Desconstruir estas ideias leva tempo, aliás as transformações sociais, normalmente, levam décadas ou mesmo séculos. “As construções sociais de género, por serem ideias feitas (mal ou bem) tornam árduo o trabalho da desconstrução, sobretudo aquele que tem de ser feito coletivamente, em sociedade”, destaca Cristina Duarte.

Ainda assim, nos últimos anos, as mudanças têm sido muito mais aceleradas, porque a informação circula a grande velocidade e as sociedades contemporâneas têm um ritmo mais rápido. “A questão é que no caso das mulheres foram mais profundas e rápidas, graças aos movimentos feministas e LGBTI+, que também têm contribuído para o debate”, acrescenta Ana Brandão. Há uma razão para isso, “é que as mulheres e os grupos mais marginalizados tiveram de lutar por uma igualdade de direitos que não tinham, os homens tinham e continuam a ter uma posição mais dominante, não tiveram de fazer essa mobilização”. Se houve mudanças conquistadas também para os homens – basta ver que hoje há muito mais pais a partilhar a licença parental com as mães e que há muito mais homens a falar abertamente de emoções sem receios – à boleia da luta feminista, a verdade é que no caso deles “não são tão notórias, não vemos essa celeridade”.

Mesmo assim, há uma certeza: a masculinidade funciona em função do que é a feminilidade (e vice-versa), por isso é expectável que as transformações sociais em torno do que se espera de cada género vão continuar a fazer-se sentir nos homens, incluindo na forma como se vestem e apresentam. E talvez figuras públicas como Harry Styles, de quem falámos no início deste texto, possam contribuir para isso. “A apropriação de signos disruptivos – por não serem mainstream, e portanto só alguns aderirem – dá também uma aura de it boy e atrai seguidores. Como fenómeno social que é, a moda gera, mais do que atenção, vontade e desejo de a seguir”, conclui Cristina Duarte.