Rui Cardoso Martins

Não dou beijos


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Posso dizer que assisti ao vivo à destruição em diferido de um homem. Agora passo-vos este paradoxo em segunda mão, para que saibam o que aconteceu:

– Tu não dizes isso a ela, tu não dizes isso a ela!

Na sala de julgamentos, um homem muito nervoso, Bruno, repetia uma conversa no metro de Lisboa com um casal de namorados. Dizia que só respondera “eh pá, não façam isso, vão-se embora”. E os outros: “És um filho da puta, cabrão, besta do caralho, vai para o caralho, filho da puta”. Quase todas as cadeiras estavam ocupadas na carruagem. Bruno sentara-se. Ela disse:

– Estas pessoas são mesmo mal-educadas, onde é que já se viu? Nem pede licença, nem nada.

– Ao menos, pedia licença, disse o namorado.

Mas eram eles quem ocupava quatro lugares, com os sacos das compras. O homem frente a frente com a namorada, e os lugares ao lado com sacos. Bruno sentou-se do lado dela, para ir de frente no sentido do comboio. Pelos vistos, tocou num dos sacos. Houve cotoveladas, pontapés de joelho. Depois das ameaças e insultos, quando se levantaram para sair, o namorado voltou atrás quando Bruno atirou pela porta uma bola de papel de alumínio que envolvera uma sandes – fê-lo por frustração, não tinha peso. Ou foi soqueira, ou caneta, ou anéis, ficou incapaz de reagir.

– Levei um murro violentíssimo.

Pontapés, golpes com guarda-chuva. Lembrava-se de uma senhora que gritava “parem, não vêem que o senhor está a sangrar muito?!”.

– Nesse dia fui levado de ambulância. Fui suturado no lábio, fizeram o diagnóstico na perna. Fiquei desfigurado, o lábio de cima completamente descaído. Eu nem me tinha apercebido de que o lábio superior estava comido. Tinha um buraco de um lado ao outro. Parecia que estava estilhaçado com uma chave de parafusos em forma de estrela.

Durante dois anos fizera tratamento ao maxilar, por bruxismo e maxilar torto. Estava em vigilância. A agressão anulou o tratamento todo. O psiquiatra receitou um comprimido para conseguir adormecer e outro para acordar. Mas também estas emoções extremas provocaram efeitos diferidos, porque quando o comprimido para acordar fazia efeito, chegava a hora de tomar o de adormecer. Quando finalmente pegava no sono, era hora de engolir o comprimido para acordar para o trabalho.

– Acabei por ser despedido em 3 de Outubro de 2018. Se eu não tivesse ido atrás deles, tinham-se perdido na multidão. Eu gritava: “Foram estes, agrediram-me! Chamem a polícia!”.

Deixou de andar de metro. Tem medo das multidões.

– Deixei de trabalhar, deixei de dar concertos. Eu deixei de dar beijos. Eu não dou beijos! Eu tenho sobrinhos e não os beijo. Eu tenho mulher…!

E adivinhámos, no silêncio e choro que se seguiu, a feroz solidão.

Em primeira mão: há menos de um mês, no comboio Alfa de Lisboa para o Porto, entrei na estação Oriente e descobri uma jovem no meu lugar. Comboio cheio. Expliquei que tinha de trabalhar e que só o conseguia fazer no sentido da marcha, não era capricho. Marquei com muita antecedência, disse com educação.

Ao lado, o namorado começou por “nunca me aconteceu esta merda” e não vou repetir o que ele mais disse, vão às frases lá em cima, as ditas a Bruno foram ditas a mim. Minutos. A linguagem foi tão igual que fico a pensar se não se tratou do mesmo casal de trogloditas. Não, deve haver mais. A violência aguça-se e normaliza-se. A meio, devolvi um dos cumprimentos – tu é que és – o que o excitou mais. Ao ver que eu me sentava no meu lugar e que abria o computador, o jovem fechou a mão diante do meu nariz: “Vou-te aos cornos, meu cabrão”, gritou (uma senhora filmou tudo no telemóvel, pois “foi horrível”). Pensei nos dias seguintes – neste comboio vou ao Norte no fim-de-semana, segunda-feira parto de avião para a América do Sul – e não quis descarrilar, acidentar a minha vida. Trabalhei a seu lado até Coimbra, onde saíram. Mas a verdade maior é esta: se o animal me tivesse tocado, respondia com uma cabeçada à alentejana que trago gravada no lobo frontal da adolescência, mesmo atrás da testa, e não sei que futuro o meu seria, mas hoje aqui estaria a contar outra história, ou outro eu, ou outra pessoa por mim.

Dou beijos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)