Os 75 anos da NATO são um regresso ao ponto de partida

Como uma frase emblemática do primeiro secretário-geral da organização permanece ironicamente atual. Em tempo de soprar velas, olhamos para os principais desafios e ameaças que pairam sobre a Aliança Atlântica. De Putin ao terrorismo, do poderio chinês à incerteza americana.

Há uma tirada icónica do primeiro secretário-geral da NATO, o britânico Lord Ismay, que reza assim. “Keep the soviets out, the americans in, the germans down” [manter os soviéticos fora, os americanos dentro, os alemães para baixo]. A frase, proferida na reta final da década de 1940, quando a NATO foi criada (1949), resumia os grandes objetivos da recém-formada aliança militar. Na ressaca da Segunda Guerra Mundial, a pujança da União Soviética assumia-se como ameaça séria (o Bloqueio de Berlim e o golpe de Estado comunista na Checoslováquia, ambos em 1948, faziam temer o pior) e os países europeus ansiavam por um acordo com os EUA, um país com outro poderio militar, capaz de garantir maior respaldo. Por outro lado, os americanos viam com bons olhos a ideia de estreitar laços com a Europa e de impedir o ressurgimento de tendências nacionalistas no velho continente – depois de todos os horrores causados por Hitler, a Alemanha continuava a ser olhada com particular desconfiança (daí o “keep the germans down”).

Quase um ano depois de ter sido assinada uma versão preliminar do acordo, na altura apenas com cinco países europeus (Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, França e Reino Unido rubricaram o então Tratado de Bruxelas), a NATO ganha por fim forma a 4 de abril de 1949, com 12 países fundadores – entre os quais Portugal – e um objetivo muito concreto: garantir a segurança e a defesa dos seus membros. O princípio está particularmente vincado no artigo 5.º , onde se estipula que qualquer ataque contra um dos países pertencentes à organização é considerado um ataque contra todos. Vem isto a propósito dos 75 anos da Aliança Atlântica, celebrados sob o signo de uma aparente coincidência cósmica. Se a Alemanha não voltou a ser um problema, as duas primeiras ideias enunciadas por Ismay são hoje marcadamente atuais: a Rússia é a ameaça número um e os EUA um imenso ponto de interrogação que só se dissipará em novembro, quando percebermos se a presidência fica nas mãos de Joe Biden ou de Donald Trump.

Ana Santos Pinto, diretora-executiva do Instituto Português de Relações Internacionais da Nova (Lisboa), que recentemente até foi nomeada para presidir a um grupo de peritos independentes com vista à elaboração de um relatório sobre a NATO e a vizinhança sul, lembra que a preocupação vincada face aos russos está plasmada no mais recente Conceito Estratégico gizado pela aliança (aprovado em 2022, na sequência da Cimeira de Madrid). No documento, o país liderado por Vladimir Putin e o terrorismo surgem mesmo como as principais ameaças enfrentadas pela organização num futuro imediato. “A invasão brutal e ilegal [da Ucrânia], as violações repetidas das normas humanitárias internacionais, os ataques cruéis e atrocidades causaram um sofrimento e uma destruição indescritíveis”, pode ler-se no prefácio do documento, em que também se destaca o “padrão de ações agressivas [por parte dos russos] contra os seus vizinhos e a comunidade transatlântica mais alargada”. Por outro lado, importa também reconhecer que a invasão do país de Zelensky foi um importante “game changer” [que muda as regras do jogo] no papel da NATO, uma pedrada no charco numa certa letargia e deriva errática em que se movia a organização nos últimos anos, uma espécie de seguro de vida. Basta recordar que, em 2019, Emmanuel Macron, presidente francês, chegou a dizer que a aliança se encontrava em “morte cerebral”. Só que o coma foi-se de súbito e a culpa é do instinto predador de Vladimir Putin, que trouxe a guerra de volta ao continente europeu.

A docente da Universidade Nova de Lisboa ajuda a contextualizar. “Quando termina a Guerra Fria, coloca-se a questão: ‘Se a NATO foi criada neste contexto, o que vai fazer agora?’ Se até aí havia um consenso sobre o propósito da organização, a partir de uma dada altura, nomeadamente depois do 11 de setembro de 2001, com o início do combate ao terrorismo, começam a coexistir diferentes visões entre os aliados. E estivemos assim até à guerra na Ucrânia.” A especialista diz mesmo que “tudo muda” em 2022. “Em 2014, quando há a invasão da Crimeia, não há uma resposta afirmativa por parte dos estados da Aliança Atlântica. Em 2022, as coisas mudam, desde logo porque aqueles estados que pertencem à NATO, e que afirmavam de forma vocal que a ameaça continuava a ser a Rússia, passavam agora a ter uma prova material de que isso era verdade. Todos passaram a concordar que a Rússia tinha de facto uma visão de contestação e oposição à NATO e que os estados europeus não estavam em condições de abdicar de uma componente de defesa.”

Vladimir Putin é uma ameaça a pairar sobre a NATO por causa da lógica imperialista e sanguinária
(Foto: Sergei Karpukhin/AFP)

Maria do Céu Pinto, professora de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho, entende que a NATO não está isenta de culpas neste processo. Olha até para os sucessivos alargamentos, com a inclusão de países que pertenciam à ex-União Soviética, como “um dos pontos menos conseguidos” dos 75 anos da organização. Note-se que a aliança tem hoje 32 estados-membros, tendo a Finlândia (março de 2023) e a Suécia (março de 2024) sido os últimos países a juntar-se à lista. “Houve uma abertura a países da Europa Central e de Leste que, a meu ver, revelou falta de ponderação face às promessas que tinham sido feitas à Rússia. Esse processo criou uma situação de tensão e um deteriorar das relações que veio a culminar nas agressões contra a Ucrânia. Penso que esses alargamentos deveriam ter sido mais bem ponderados e mais bem geridos. Desde meados dos anos 1990 que os russos vinham a emitir avisos de situações que não lhes agradavam.” Chegados aqui, o prognóstico de Maria do Céu Pinto não é propriamente otimista. “Estamos perante uma nova Guerra Fria, que já não é muito fria. A Europa tem de se preparar porque o cenário de uma guerra da Rússia contra um elemento da NATO tem consistência, não é por acaso que os líderes políticos e chefes militares de vários países têm vindo a falar na possibilidade de uma nova guerra na Europa nos próximos dez anos.” Também por isso, a investigadora universitária não tem dúvidas de que um dos principais desafios da NATO passa por “reforçar a sua postura de dissuasão”.

Depois, claro, há outras ameaças a pairar sobre os países que a integram. Desde logo, o terrorismo, igualmente destacado no tal Conceito Estratégico de 2022. “Também enfrentamos a ameaça persistente do terrorismo, em todas as suas formas e manifestações”, refere o documento. Os ataques repetidos do Daesh (ainda no último fim de semana, um ataque a uma sala de espetáculos, curiosamente em Moscovo, fez mais de 130 mortes) são porventura a face mais visível do problema. No plano dos desafios, ainda que com contornos totalmente distintos, há ainda a considerar a preponderância crescente da China a nível global, um “adversário estratégico” muito relevante, destaca Maria do Céu Pinto, que tem vindo a reforçar “o seu peso e importância a nível mundial” e que de alguma forma “mina e ameaça a coesão e os valores da NATO”.

Já o chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, José Nunes da Fonseca, releva outras questões prementes. “O Conceito [Estratégico] pugna por uma abordagem 360 graus face a ameaças globais e interligadas, num amplo espetro que inclui a ameaça terrorista transnacional e a estabilidade internacional decorrente da rivalidade geopolítica, a instabilidade no flanco sul, as atividades mal-intencionadas no ciberespaço e no espaço, a emergência de tecnologias disruptivas, a erosão do controlo de armamentos, do desarmamento e da não-proliferação, a competição por recursos e as alterações climáticas.” Exige-se, por isso, que a aliança continue “a adaptar-se, a ser permanentemente credível, a manter-se coesa, a ser ágil e resiliente”.

Um bico de obra chamado EUA

Mas e se o maior problema vier do interior da própria NATO? Tendo em conta a possibilidade de Donald Trump voltar ao poder em novembro, não se trata de uma perspetiva tão remota. Basta lembrar que, ainda em fevereiro, o candidato republicano encorajou a Rússia a invadir estados-membros da NATO que não destinassem 2% do seu PIB para gastos militares, tal como está estipulado entre os membros da organização. Trump disse depois que tudo não passara de uma “tática de negociação”. Garantiu até que não abandonaria a aliança – desde que os países europeus honrassem os seus compromissos -, mas o episódio foi ilustrativo da incerteza que paira.

Ana Santos Pinto resume o que está em cima da mesa. “No fundo, há duas opções. Opção um: Joe Biden ganha e tudo se mantém mais ou menos como está. Opção 2: Trump ganha e o posicionamento transacional dos EUA vai seguramente refletir-se na relação com os estados europeus e a Aliança Atlântica.” Daí que Maria do Céu Pinto insista no imperativo da autossuficiência. “Os países europeus terão de fazer um esforço de investimento no sentido de se conseguirem defender sozinhos, caso se coloque o cenário de os EUA deixarem a NATO ou de, mesmo continuando, não garantirem a defesa da Europa. Isto vem imprimir uma urgência enorme e deve motivar um esforço grande no sentido de a Europa se tornar autossuficiente.”

E voltamos à badalada questão dos 2%. Pinto Ramalho, general e ex-chefe do Estado-Maior do Exército que, entre 1933 e 1996, integrou a delegação portuguesa da Aliança Atlântica, enfatiza este ponto. “Claro que o que Trump disse é uma barbaridade, mas já Kennedy, há muitos anos, disse no National Security Council que a Europa andava à boleia dos EUA em matéria de defesa. Uma das principais valências da NATO é garantir a dissuasão, é dar mostras de que a agressão não compensa. E isso só se consegue demonstrando capacidade militar. A meta dos 2% foi acordada na Cimeira de Gales [2014] e, dez anos depois, ainda não conseguimos que todos os países cumprissem os 2%.”

Donald Trump pode estilhaçar a coesão da aliança
(Foto: Michael M. Santiago/Getty Images via AFP)

Atualmente, 19 dos 32 países não o cumprem, sendo que sete deverão conseguir fazê-lo a partir deste ano. O general na reforma confere particular dramatismo a esta questão. “É um desafio crucial. Se não acontecer, tudo o resto é secundário. Politicamente, a NATO pode estar muito coesa. Se não tiver meios, não serve de nada.” Ana Santos Pinto coloca a questão nestes termos: “O ponto essencial nas sociedades europeias é demonstrar que ter um Estado social, que assegure bem-estar e qualidade de vida, não é incompatível com uma aposta na segurança e na defesa. Até aqui, a questão sempre foi colocada numa lógica de uma coisa ou outra. O que se exige é que se crie um modelo que permita um equilíbrio”.

Nem tudo são más notícias, ainda assim. Para Pinto Ramalho, o balanço destes 75 anos da NATO é indubitavelmente positivo. “É sem dúvida uma organização vencedora. Ganhou a Guerra Fria, aumentou as suas fronteiras, foi capaz de garantir a paz nos seus países-membros. Houve tensões, mas conseguiu-se sempre gerir esses processos. E está hoje mais forte e mais coesa. É uma organização de sucesso.” E ainda há o impacto edificante da NATO nas forças portuguesas, que o general José Nunes da Fonseca faz questão de destacar. “As Forças Armadas de hoje são o resultado da influência transatlântica que modernizou meios, modelou a cultura organizacional, gerou conhecimento, valorizou o fator humano e criou infraestruturas.”