Valter Hugo Mãe

Mudar de vida


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Passo os anos sem decidir se quero ficar perto ou longe. Quero estar aqui e criar raízes, tanto quanto me farto desta cosmética e quase escolho uma solidão sossegada, uma casa na montanha a tocar Bach ou Vivaldi, sem mais ninguém senão a multidão dos livros.

É o Carlos Paredes que tem um tema chamado “Mudar de vida”, melancólico e incrivelmente belo, e eu penso constantemente na necessidade de alterar tudo em meu redor, e penso sempre que há uma tristeza profunda nisso também. Mudamos constantemente, mesmo que nem nos apercebamos, somos uma deriva a partir de certo padrão de reconhecimento. Contudo, julgo ser comum que sintamos vontade de viver de outro jeito, recomeçar como se pudéssemos erguer nova vontade, mais rente ao sonho ou à resistência, para não padecermos infinitamente de nossas falhas e defeitos, nossos medos e vazios.

Eu mudaria para descobrir a vida sem minhas vulnerabilidades. Se pudesse deixar para trás os afectos e sentir nada em relação a quem perdi ou perco. Mas é o pior de tudo. Partir de uma casa ou de uma cidade, perder livros, não escrever livros, abandonar as fotografias ou as promessas de visita e os verões como eles eram, não importa. O que importa é a cruel impossibilidade de sermos indiferentes às pessoas no instante em que vamos embora. Porque se torna mais cruel com a distância a crescer e o destino para onde vamos não abdica de lembrar ninguém. Estamos sempre acompanhados.

Mudar de vida é, pois, começar por tomar o que havia como ruína e observar a ruína sem lhe cair no abismo. Começa por ser o confronto necessário com aquilo de que se quer fugir, o que pretendemos rasurar para futuro, por mais que seja sobra do maior amor, de toda a dedicação e investimento. A minha mãe é quem diz que as coisas caras que nos incomodam devem ser as primeiras a serem deitadas fora. Porque o terem sido caras aumenta o quanto nos incomodam. Tornam-se obscenas, têm de ser implacavelmente eliminadas. Mudar de vida começa por essa ferida. A de golpear o que nos é mais precioso, porque de costume somos explorados exactamente por aquilo que nos é mais precioso.

Passo os anos sem decidir se quero ficar perto ou longe. Quero estar aqui e criar raízes, tanto quanto me farto desta cosmética e quase escolho uma solidão sossegada, uma casa na montanha a tocar Bach ou Vivaldi, sem mais ninguém senão a multidão dos livros. Sigo obstinado com a ideia de mudar de vida e a tristeza que isso contém aponta em duas direcções: para a facilidade de me aninhar onde a cidade inebrie de ruído e pressa, para que nada de meu seja maior do que a urgência da realidade, ou buscar a terra nova, onde cada coisa seja de outro significado e eu assista ao Mundo enquanto paulatinamente o Mundo decida que pertinência ainda guarda para mim. É muito tentador sairmos de nossas referências e testarmos para que servimos onde nada nos esperava.

Já havia reparado que em todas as primaveras me ponho em fuga. Senão de verdade pela terra fora, ao menos intensamente pela cabeça adentro. Vícios antigos, mania de apelar à coragem de não parar jamais.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)