Peyroteo, um século

Notícias Magazine

Na semana passada, a 10 de março, Fernando Peyroteo (1918-1968) fez um século que nasceu. Que vida! Ando a contá-la, porque ela me conta, aproveito cada ocasião, ofereço-a em cada conversa que o merece, “sabias que o Peyroteo…”

Foi o 11º filho de sua mãe, Maria da Conceição. Número mágico para um futuro futebolista entrar em campo. Quando ele nasceu, uma irmã, Berta de Bívar, cantora lírica, estava casada com o pianista José Vianna da Motta, discípulo de Franz Liszt. Vocês sabem, o Liszt da Rapsódia Húngara nº 2, para violino.

Mais tarde, um famoso jornalista, Tavares da Silva, de tanto ver um concerto que se produzia nos estádios – as fugas dos extremos Jesus Correia e Albano, o virtuoso Vasques, a harmonia de Travassos e o final dramático de Peyroteo – crismou a orquestra: Cinco Violinos. No naipe, Peyroteo, allegro com brio, era o mais agudo, brilhante e estridente. Goleador, enfim.

Aos golos – goal, objetivo, o que fazer da vida, já lá vamos. Mas note-se ele ter nascido na Humpata, sul de Angola, no planalto da Huíla, mais alto que a serra da Estrela. Na Humpata, lugar de encontro de pastores mumuilas, de boers e os seus carros de bois e de madeirenses, terra que marca, telúrica.

Fernando Peyroteo, branco africano, no dia em abandonou o futebol, o seu clube, o Sporting, ofereceu-lhe um jogo de homenagem, contra o Atlético de Madrid. Ele aceitou, mas pediu um jogo prévio, da seleção de Lisboa contra a seleção dos africanos que jogavam cá. Ele alinhou por esta, homenagem à terra que lhe deu as raízes.

Angola, palmilhou-a de lés a lés, nas cabinas dos camiões, adolescente prodígio de pés matadores, viagens de mil km, alinhando pelo Sporting de Moçâmedes, dias depois pelo Sporting do Lobito ou Sporting de Luanda – como os cavaleiros medievais, de torneio em torneio, com os mesmos paramentos. Nele, verde e branco.

Em Luanda fez amizade com o negro lisboeta Guilherme Espírito Santo. Abalariam ambos para Lisboa, iluminar o futebol português num duelo de marcadores – o branco africano, no Sporting, e o negro europeu, no Benfica.

Em 1938, os dois avançados-centro, amigos e adversários, foram convocados pela seleção para jogar contra a Alemanha, na Nuremberga nazi, onde se faziam as leis raciais. Que lição em calções!

Então, vamos aos golos. O seu primeiro jogo na Europa (e primeiro com botas de pitons) foi contra o Benfica e Peyroteo marcou dois golos. No segundo foi contra o Porto e repetiu a dose. Começava uma tradição: ainda hoje, a 70 anos do seu abandono do futebol, Fernando Peyroteo é o futebolista que marcou mais golos ao Benfica e ao FC Porto.

E há esta estatística mundial: no campeonato nacional, fez 197 jogos e marcou 331 golos. Isto é, não há no mundo de futebol sério (tirem o Butão) ninguém com uma carreira longa (13 anos) com uma média de golos de 1,68 por jogo. Mais de três golos de dois em dois jogos… Retirado, num jogo de antigas glórias em Barcelona, lesionou-se. Cortaram uma perna ao goleador.

Fernando Peyroteo foi também selecionador nacional, dois jogos. Um, marco: foi ele quem chamou pela primeira vez Eusébio à equipa das quinas. E o segundo, em outubro de 1961, em que o angolano construiu esta equipa portuguesa, contra a Inglaterra: «Costa Pereira, Hilário, Lúcio, Mário Lino, Pérides, Vicente, Coluna, Yaúca, Eusébio, José Águas e Cavém». A maioria não são brancos e a lista de nomes é um tratado de sociologia histórica: seis são moçambicanos, dois são angolanos, um brasileiro (Lúcio) e um açoriano (Lino).

Não fosse a presença de Cavém, o retângulo europeu ficaria sem representante na seleção de Portugal – e, mesmo esse, só de resvés, porque Cavém nasceu em Vila Real de Santo António, na fronteira espanhola… Nasceu há um século e morreu há 40 anos. Está à espera de um filme.