Cauções. Como “prender” potenciais criminosos pelo bolso

Caso do futebolista Dani Alves, que pagou um milhão de euros à Justiça espanhola para sair em liberdade condicional, é o episódio mais recente. Mas em Portugal também há exemplos de cauções chorudas. Conheça os contornos desta medida de coação muito badalada, mas pouco aplicada.

O caso agitou o final do mês passado, em Espanha e no Brasil sobretudo, de alguma forma em todo o Mundo Ocidental. Depois de passar mais de um ano detido, em prisão preventiva, por alegadamente ter violado uma jovem de 23 anos na casa de banho de uma discoteca em Barcelona, o futebolista brasileiro Daniel Alves, que em tempos brilhou ao serviço do Barça, da Juventus, do PSG, foi libertado, mediante o pagamento de uma caução de um milhão de euros. A decisão foi altamente polémica. O Ministério Público espanhol (que apresentou, sem sucesso, um recurso contra a libertação do jogador) apontou o dedo ao “elevado risco de fuga” e lembrou que “dada a sua elevada capacidade económica”, o risco não seria atenuado “pelo depósito da fiança”. A vítima foi arrasadora: “Sinto que me voltaram a violar”. E, entre múltiplas acusações globais de que a decisão abria um precedente perverso, ao estabelecer o “preço” de uma violação, até o presidente do Brasil, Lula da Silva, se insurgiu. “O dinheiro que Alves tem, o dinheiro que alguém lhe pode emprestar [foi notícia que, dado o arresto de bens de que foi alvo, foram os amigos a emprestar-lhe o montante em causa], não pode comprar a ofensa que um homem faz a uma mulher cometendo uma violação”, defendeu. Note-se que o atleta foi condenado, em fevereiro deste ano, a quatro anos e meio de prisão, tendo entretanto interposto recurso. Também os procuradores recorreram, pedindo uma revisão da sentença. Dani Alves enfrenta, portanto, um horizonte penal máximo de 12 anos de prisão.

A controvérsia remete-nos para uma análise mais detalhada a esta medida de coação, plasmada no Código de Processo Penal (CPP). Antes de mais, caução ou fiança (termo tão frequentemente utilizado a propósito da situação de Dani Alves e, na verdade, de muitos outros, quando estão em causa casos internacionais)? Mário Ferreira Monte, professor catedrático de Direito Penal e Processo Penal, na Escola de Direito da Universidade do Minho, começa por aí, ajudando, desta forma, a dissipar um equívoco que surge amiúde. “Em Portugal, no âmbito do processo penal, temos a figura da caução. Não se chama fiança, como em alguns países, até porque a fiança é um dos modos através do qual a caução pode ser prestada”, esclarece. Lá iremos, a esse significado distinto da fiança à luz do nosso processo penal. Do princípio. Distingamos, antes de mais, a caução enquanto medida de coação – a aplicada no caso Dani Alves – da caução económica, que é uma “medida de garantia patrimonial”, uma salvaguarda que pode ser usada pelo juiz para garantir que despesas como as penas pecuniárias ou as custas do processo serão liquidadas.

Voltando ao primeiro conceito de caução, vale a pena enunciar a definição de medidas de coação: medidas processuais que, condicionando a liberdade do arguido, visam garantir que ele se mantém contactável, que não repete a atividade criminosa, que não foge. Podem aplicar-se durante as fase do inquérito, da instrução e do julgamento, cessando automaticamente assim que a decisão transita em julgado. E quais são as medidas de coação previstas na lei? Por ordem crescente de gravidade, temos: termo de identidade e residência (TIR); caução; obrigação de apresentação periódica; suspensão do exercício de funções, profissão e direitos; proibição de permanência, de ausência e contactos; obrigação de permanência na habitação ou prisão domiciliária; prisão preventiva. A caução surge, assim, como a segunda medida de coação menos gravosa, até por não ser privativa da liberdade. E quando é que se pode aplicar? Em teoria, sempre que seja imputado a um arguido um crime punível com pena de prisão. Mário Ferreira Monte sublinha, aliás, que “contrariamente ao que já sucedeu antes do atual Código de Processo Penal ter sido aprovado, em 1987, hoje não há crimes ‘incaucionáveis’” – à exceção, lá está, dos que não são puníveis com pena de prisão.

Maximiano Vale, juiz de direito e vice-presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, lembra que, diferentemente do que acontece com o TIR, uma medida de aplicação obrigatória sempre que alguém é constituído arguido, no caso da caução – e das restantes medidas – “há certos perigos que têm de se verificar”. A caução, em particular, implica que haja “perigo de fuga, de perturbação do inquérito ou de continuação da atividade criminal”, conforme descrito no artigo 204.º do CPP. Já agora, a caução e o arresto de bens são coisas bem distintas. Maximiano Vale vinca isso mesmo. “A caução é estritamente uma medida de coação, cujo objetivo é salvaguardar os perigos referidos. Já o arresto é usado na criminalidade económica, quando há suspeitas de que os bens tenham sido obtidos através da prática de crime. Aí, a finalidade já é salvaguardar uma eventual perda dos mesmos a favor do Estado, caso haja uma condenação.” Simplificando, serve para evitar, por exemplo, que os arguidos possam passar os seus bens para o nome de outros, esquivando-se a entregá-los ao Estado.

Uma equação algo subjetiva

Voltando à caução, importa também perceber como se define o valor da mesma. E porque é que volta e meia, sobretudo em casos mediáticos ligados ao crime económico, nos deparamos com valores tão altos. Do caso BES ao que envolve a EDP, passando pelo BPN ou mesmo pelo processo Cartão Vermelho, que levou Luís Filipe Vieira, antigo presidente do Benfica, a pagar três milhões de euros de caução, são vários os episódios altamente badalados. Armando Pereira, cofundador da Altice e figura de destaque na Operação Picoas, continua a liderar o top 10 das cauções mais chorudas em Portugal, tendo desembolsado dez milhões de euros (ver lista). O ponto 3 do artigo 197.º do CPP estabelece que “na fixação do montante da caução tomam-se em conta os fins de natureza cautelar a que se destina, a gravidade do crime imputado, o dano por este causado e a condição socioeconómica do arguido.”

Paulo Lona, recém-eleito presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (MP), resume assim uma das premissas que subjaz à definição do valor [é o MP quem propõe a sua aplicação, competindo a decisão final ao juiz]. “Habitualmente, quando se aplica uma caução, o perigo mais premente é o perigo de fuga. E portanto tem de ser um montante suficientemente elevado para fazer a pessoa pensar duas vezes antes de fugir ou de violar as obrigações que lhe forem impostas. Daí que a capacidade económica do arguido também seja relevante. Não fará sentido, por exemplo, definir uma caução de mil euros no caso de alguém que tem rendimento de 100 mil.” Mário Ferreira Monte também enfatiza este ponto. “Em termos de eficácia, uma caução pode variar muito tendo em conta a gravidade do crime e a condição socioeconómica do arguido. Por exemplo, para uma pessoa de modesta condição económica, perder uma caução de cinco mil euros pode ser muito mais indesejável do que para uma pessoa milionária perder uma caução de um milhão de euros. Nestes casos, o juiz deve ponderar aplicar outras medidas mais eficazes e até pode cumular a caução com outras medidas.”

E se é incontornável que a decisão deve sempre reger-se pelos princípios da equidade e da proporcionalidade, não é menos verdade que, não havendo fórmulas matemáticas que ajudem a definir o valor das cauções, este será sempre um exercício impregnado de alguma subjetividade. Face a isto, certos valores definidos anteriormente, em casos altamente mediáticos como os já referidos, acabam por servir de linha orientadora? O juiz Maximiano Vale responde assim: “Em Portugal não temos um ‘case law’, como acontece no Reino Unido, por exemplo, em que a decisão de um tribunal vincula os outros. Cá isso só acontece no caso dos tribunais superiores. Mas um juiz, por regra, não se socorre só do seu critério pessoal. Recorre muitas vezes à pesquisa e ao estudo de decisões e outros tribunais, pelo que as decisões anteriores podem ajudar a determinar o valor a fixar”. Acresce, a título explicativo, que a caução não implica necessariamente que haja um depósito do valor em causa numa conta do tribunal, ainda que seja esse o cenário mais frequente. É também possível prestá-la através de penhor (objeto, móvel ou imóvel que garante o pagamento de uma dívida), hipoteca ou, lá está, fiança ou fiança bancária.

E afinal, é ou não frequente a aplicação de cauções na Justiça portuguesa? Não sendo conhecidas estatísticas oficiais que especifiquem este ponto, a perceção dos magistrados ouvidos pela “Notícias Magazine” é que continua a ser pouco utilizada. “É aplicada sobretudo no grande crime económico, no caso de arguidos com grande capacidade financeira”, concorda Maximiano Vale. Mesmo que a lei preveja que a caução seja determinada em função da condição socioeconómica do arguido. Certo é que, noutro tipo de crimes, tem “muito pouca implementação”.

Um magistrado judicial com cerca de 25 anos de experiência, que falou com a “Notícias Magazine” sobre o tema, mas pediu para não ser identificado, reitera que esta medida de coação acaba por ter “muito pouca aplicação em Portugal”. E avança com uma estimativa pessoal. Em tantos anos de profissão, ter-lhe-ão passado pelas mãos cerca de 800 casos. Terá aplicado a caução em cerca de 1%. O que também se explica com o tipo de crimes que lhe chegam, sobretudo relacionados com a violência doméstica e o tráfico de droga. “A violência doméstica é uma situação em que é manifestamente inútil a aplicação de uma caução, porque ela não vai impedir o arguido de voltar a agredir a vítima. E, em relação ao tráfico de droga, dificilmente evita o perigo de continuação da atividade criminosa. Sendo que ainda há os crimes de tal maneira graves que a caução não é adequada.” Apesar do tal princípio de que, à luz do nosso Código de Processo Penal, todos os crimes puníveis com pena de prisão são caucionáveis. Paulo Lona dá um exemplo concreto. “Se estiver em causa um crime de homicídio, e sabemos que os crimes de homicídio geram sempre um grande alarme social, dificilmente será aplicada uma caução. Também é uma questão de bom senso.” Condicionantes que acabam por conferir à caução um certo rótulo de medida de coação dos ricos. Ricos e de colarinho branco.