Na primeira pessoa: «Enquanto tiver uma réstia de esperança, o cancro não ganha»

Texto Catarina Fernandes Martins | Fotografias Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Um dia, quando tirei a camisola para tomar banho, a minha mulher disse: «Tens aí um sinal estranho.» No dia seguinte tirei­‑o. Tive alguma esperança de que não fosse melanoma. Mas era.

Menos de um mês depois estava a ser operado. Fui acompanhado no privado e como não havia células melanocíticas no gânglio que me foi retirado pensei que não voltaria a ter mais nenhum sinal de melanoma. Quatro anos depois, num raio­‑x normal, foram detetadas manchas no lóbulo inferior do pulmão direito. Eram metástases do melanoma.

A médica disse­‑me que eu tinha de contar à família assim que chegasse a casa e eu disse­‑lhe que isso não ia acontecer.

A médica disse­‑me que eu tinha de contar à família assim que chegasse a casa e eu disse­‑lhe que isso não ia acontecer. No dia do diagnóstico, o meu filho mais velho ia fazer o exame da especialidade no curso de Medicina e estava muito nervoso.

Eu sou tripulante de voos de longo curso e os tripulantes são muito solitários. Por isso preciso do meu tempo para conseguir reagir às coisas. Fiz uma série de exames sem ninguém saber que eu estava doente.

Orlando Guerreiro, 55 anos, tripulante de voos de longo curso, descobriu por acaso que o cancro tinha voltado e precisou de tempo para dar a notícia à família.

Ao fim de três dias, o meu filho chegou a casa eufórico porque tinha acabado de perceber que ia ter uma nota extraordinária. Aproveitei aquele momento em que estava a celebrar com ele e a minha mulher. «Foi uma notícia maravilhosa, que me traz uma alegria enorme à vida, mas agora tenho de vos dizer uma coisa.»

«Olha bem para mim, estás a pôr­‑me na cova e eu estou a fugir dela a sete pés. Eu não vou morrer nem que a vaca tussa.»

Aquilo caiu como uma bomba. Depois disse­‑lhe: «A notícia que acabas de me dar é um combustível para a força de que preciso.» A minha atitude deu­‑lhes ânimo.

Com o meu filho mais novo foi diferente. Ele tem um coração do tamanho do mundo, pensou que me ia perder e defendeu­‑se afastando­‑me e hostilizando­‑me. Um dia disse­‑lhe: «Olha bem para mim, estás a pôr­‑me na cova e eu estou a fugir dela a sete pés. Eu não vou morrer nem que a vaca tussa.»

Tenho algumas propriedades, estou bem na vida, mas era impossível pagar esse valor. Não há melhor no país do que o IPO.

A partir daí tudo mudou e unimos forças para lutar contra a doença. No privado disseram­‑me que não tinha hipótese de ser operado [uma das metástases estava colada à aorta]. Por uma série de circunstâncias acabo por ir parar ao IPO, o que foi a minha sorte. Aí, o médico cirurgião Vítor Farricha decidiu avançar para a cirurgia.

Era muito radical, mas o cancro deixou de cá estar. Agora faço sessões de imunoterapia de quinze em quinze dias. O custo dessas sessões no privado ronda os seis mil, sete mil euros. Cada uma! Tenho algumas propriedades, estou bem na vida, mas era impossível pagar esse valor. Não há melhor no país do que o IPO.

Acabei por atribuir um significado ao meu diagnóstico. O cancro apareceu e mudou o meu conceito de felicidade, que é agora moldada com a consciência do fim.

A imunoterapia é uma esperança de vida e ter a doença hoje é muito diferente de a ter há cinco anos quando me foi diagnosticado o melanoma primário. Faço uma vida normal. Por vezes acordo e lá está o cancro, a pairar na minha cabeça.

Acabei por atribuir um significado ao meu diagnóstico. O cancro apareceu e mudou o meu conceito de felicidade, que é agora moldada com a consciência do fim quando antes era uma felicidade inconsciente. Já perdi muitos amigos e colegas para o cancro. Todos os dias penso neles. Continuo cá e enquanto eu tiver uma réstia de esperança de que posso ganhar, ele não ganha de forma nenhuma. Pelo menos no que diz respeito ao meu espírito.

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