Vivem na sombra mas são decisivos: os segredos dos braços-direitos

Paula Leitão é diretora de produção da artista plástica Joana Vasconcelos. Catarina Correia é chef executiva de cozinha da Casa de Chá da Boa Nova do chef Rui Paula. Paulo Oliveira é pai e agente do motociclista Miguel Oliveira. Nuno Rafael é diretor musical de Sérgio Godinho há 24 anos. Tratam de tudo o que se possa e não possa imaginar. Desmontar uma janela do Palácio de Versalhes para entrar um helicóptero de plumas e levar um cacilheiro a Veneza. Criar pratos e coordenar o serviço de um restaurante com duas estrelas Michelin. Verificar costuras do fato de corrida e a higiene do capacete. Fazer arranjos musicais e definir alinhamentos de concertos. São braços-direitos (salvo seja) sem agendas das nove às cinco.

Paula Leitão trabalha no ateliê da artista plástica Joana Vasconcelos, é diretora de produção, está habituada a ver nascer peças de grandes dimensões e a planear exposições pelo Mundo. Gere equipas e projetos, pesquisa e encomenda materiais, operacionaliza ideias, pensa em soluções, faz grelhas com planos de desmontagem. Em março, estava em Hong Kong na montagem da exposição imersiva “Floresta Encantada”, a adaptar-se ao fuso horário. Na última semana, acompanhou a desmontagem da “Plug-In” no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa, fez contactos com a equipa do museu, com responsáveis pelo transporte. Este domingo parte para a Alemanha. Antes disso, tratou da entrega de obras em casa de colecionadores, enviou uma peça para um leilão de solidariedade, pediu a Joana para assinar alguns objetos, anda a pensar no planeamento dos próximos meses, pelo menos até julho, para distribuir pela equipa. Paula Leitão descreve com gestos o que vai contando. “Um processo nunca é igual a outro”, garante. E isso agrada-lhe.

Catarina Correia é a primeira a chegar à Casa de Chá da Boa Nova do chef Rui Paula, em Leça da Palmeira, Matosinhos. É chef executiva da cozinha desse espaço, obra do arquiteto Siza Vieira, construído sobre rochas, vista sobre o mar, que mantém o estatuto de duas estrelas Michelin. Gosta de chegar cedo, de ser a primeira a entrar ali, é o braço-direito do chef, e tem várias responsabilidades. Organiza a equipa, e são 14 pessoas na cozinha, cria novos pratos, elabora menus, trata das encomendas, contacta fornecedores, discute preços, emprata, gere o serviço. Como a maestrina de uma orquestra. “Tudo alinhado, uma nota fora do sítio e a sinfonia já não corre bem”, diz.

Há dias, ligou ao chef, ele a caminho do restaurante, pediu-lhe para comprar um ingrediente, Rui Paula trouxe-lhe o que pediu, foi para a cozinha e criou um prato de peixe. O chef provou, ficou rendido ao sabor, surpreendido com a rapidez. O prato há de ser aprimorado para entrar na carta. É essa parte criativa que fascina Catarina Correia. “Criar pratos é uma maneira de extravasar pensamentos e sentimentos e acaba por refletir o que nós somos.” Também aprecia a adrenalina do serviço. Trabalha de terça a sábado, as folgas são ao domingo e segunda para todos os funcionários, as férias também coincidem. Tem o telemóvel sempre disponível para o que o chef precisar.

Sábado, 6 de abril, depois de almoço, Nuno Rafael está no carro a caminho do ponto de encontro, em Lisboa, pela frente mais de uma hora de estrada para norte, há concerto no Cineteatro Paraíso, em Tomar, logo à noite. A tournée Liberdade de Sérgio Godinho & Os Assessores tem nove datas em abril, esta é a primeira. O plano está definido. Chegar, ir para palco, afinar instrumentos, testar o som, tocar em conjunto alguns temas, eventualmente insistir nas canções mais recentes, terminar com o primeiro tema do concerto. Sérgio Godinho fará o ensaio de voz, estudará a sala e o palco, um lugar não é igual ao outro, contará os passos até ao microfone. Ensaios feitos, jantar cedo, pelas sete da tarde, voltar ao cineteatro, verificar a troca de guitarras, Sérgio Godinho aquece a voz, o ritual dos abraços antes de entrar em palco. E o espetáculo começa. Nuno Rafael, guitarrista e diretor musical de Sérgio Godinho, deixa os bastidores e também entra em palco para tocar, é um dos cinco músicos da banda. É tudo muito orgânico, natural e fluido. “Nada de formal, isto é uma família”, afirma Nuno Rafael.

Uma família. Em 2004, Paulo Oliveira retirou-se da competição, era uma cara bem conhecida do Paddock do MotoGP, chegou a ser campeão nacional no campeonato de resistência. Terminava as suas provas e, nesse momento, alguém tinha de assistir o filho que entrava na pista. O plano era dedicar-se ao filho que já se fazia notar no meio dos outros. “Na altura, não se compaginava com o nível de exigência do Miguel, ele já expressava esse talento”, recorda. Nunca mais se separaram.

Paulo Oliveira, agente e pai do motociclista Miguel Oliveira, trata de contratos e patrocínios, sempre atento à alimentação e hidratação, ao clima e às pistas. Não descura o mais ínfimo pormenor para que o piloto se concentre no que realmente importa, na competição
(Foto: Paulo Calado)

Acompanha o filho na grelha. Verifica o fato costura a costura, luvas, botas, capacete, viseiras. Se está tudo como deve ser, em perfeitas condições, higiene assegurada. Um fato que corre à chuva só pode ser usado duas vezes. Já aconteceu as costuras do antebraço estarem a estrangular a veia e a cortar a circulação do sangue. Não esquece, foi no Estoril, em 2011. Toda a atenção, portanto, não há nada que lhe escape. “Trato de tudo o que se possa e não possa imaginar.” Contratos, patrocínios, negócios desportivos, gestão de imagem. Os contactos são diretos, sem intermediários pelo meio. “Obviamente que a última palavra é do Miguel, os contratos têm a assinatura dele, só lhe proponho opções”, refere Paulo Oliveira.

Um cacilheiro em Veneza, cozinha aberta a clientes

O fato de piloto e outras coisas mais. Paulo Oliveira passa tudo a pente fino, ao mais ínfimo pormenor. A hidratação, a alimentação, o clima dos locais da prova, o tipo de terreno, as diferenças horárias. “Chego ao ponto de lhe medir a urina por causa da hidratação”, confessa. Sempre a tratar de tudo e a antever as necessidades do filho para lhe varrer tudo o que é supérfluo da mente. Tudo o que é possível fazer, faz, para que o motociclista se concentre no que é essencial, na competição. Tudo o resto, fica nas suas mãos. Não há uma agenda com encontros marcados. “Vamos resolvendo as questões que vão surgindo com as necessidades que vão sendo impostas, mas não temos uma agenda, não há uma rotina”, esclarece.

Em 2012, Joana Vasconcelos expôs no Palácio de Versalhes, em Paris, França, foi a primeira mulher e a mais jovem artista a fazê-lo naquele lugar. Dois anos de preparação, dez dias de montagens, questões complexas para resolver como desmontar uma janela para fazer entrar o helicóptero de penas, o “Lilicoptère”, desmontar lustres que nunca tinham saído do seu lugar, suspender as Valquírias da artista na escadaria principal do palácio, o que exigiu a construção de uma estrutura à medida, baixar luzes de quatro lustres à manivela, reorganizar a entrada de milhares de visitantes. Passou tudo pelas mãos de Paula Leitão. “Faz parte do processo, não sinto grandes dificuldades, desde que esteja planeado. Quando somos profissionais, as coisas fluem”, comenta.

Para os três corações independentes, feitos com talheres de plástico vermelhos, dourados e pretos, como a mais fina filigrana de Viana, Paula Leitão pesquisou e encontrou um fabricante alemão para o fornecimento de cinco mil garfos, colheres e facas – e, dado o volume, explicou que era para um projeto artístico. A capa de plumas do helicóptero deu trabalho. Uma encomenda gigante a um criador de avestruzes de Setúbal e meses a tingir penas, secá-las com o secador de cabelo, penteá-las uma a uma.

Em 2013, levar um cacilheiro à Bienal de Veneza, o “Trafaria Praia”, foi uma aventura. “Com muito pouco tempo, foi uma epopeia”, salienta a diretora de produção. Autorizações junto das autoridades marítimas, contratar tripulação, arranjar um piloto italiano. E o painel de azulejos pintado na parte exterior do barco, inspirado num painel que existe no Museu do Azulejo com a vista da costa de Lisboa antes do terramoto, implicou contactos com os serviços militares, autorizações para sobrevoar a costa, um helicóptero com um fotógrafo e uma pessoa a filmar para chegar à perspetiva pretendida e reproduzi-la nos azulejos do cacilheiro. Quando houve vontade de aumentar a escala das Valquírias preenchidas com esferovite, foi preciso pensar numa solução por causa do peso dessas peças suspensas. Paula Leitão encontrou uma empresa de insufláveis. A artista sonha, a artista tem, ela operacionaliza. Joana Vasconcelos sabe de cor o número de telemóvel de Paula Leitão.

Catarina Correia trabalha com o chef Rui Paula há 13 anos e sete meses. “Há uma simbiose muito grande entre mim e o chef, trabalhamos em sintonia, falamos a mesma linguagem, o que torna tudo mais fácil”, declara. Os clientes são convidados a conhecer a cozinha antes da sobremesa e ela é a guia desse momento. “Não é uma cozinha barulhenta, é uma cozinha silenciosa, está tudo tão oleado que não há muito ruído.” Não gosta de berros na cozinha, a comunicação é silenciosa.

Catarina Correia tirou o curso de Biologia nos Açores, equacionou seguir para o doutoramento em Londres, foi quando decidiu mudar e dedicar-se ao seu gosto pela cozinha – aos 18 anos, já tinha pensado inscrever-se na Escola de Hotelaria do Porto. Partiu para Londres para estudar numa das melhores escolas de gastronomia, Le Cordon Bleu. Tirou o curso de cozinha, ficou quatro anos a trabalhar em Londres, um dos primeiros restaurantes por onde passou era do célebre chef Gordon Ramsay. Habituou-se a uma cozinha exigente, agressiva.

No casamento da irmã, ouviu falar do chef Rui Paula, pesquisou, não descansou até chegar a ele. O pai ia para os lados do Douro, levou o currículo da filha, entregou-o em mãos ao chef Rui Paula no restaurante DOC. Horas depois, o chef ligou-lhe, era uma quinta-feira, queria que ela começasse a trabalhar na segunda no DOC, no Douro, enquanto o DOP, no Porto, estava em obras. Seis meses no DOC, passou para o DOP quando abriu, pouco depois estava aos comandos da Casa de Chá da Boa Nova, que está a fazer dez anos.

A chef Catarina Correia orienta a cozinha e coordena o serviço da Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira. É o braço-direito do chef Rui Paula há quase 14 anos, depois de ter estudado em Londres. Não descansou enquanto não lhe enviou o currículo. Correu bem
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

“A minha formação artística permite-me ter a sensibilidade e o conhecimento para entender as ideias da Joana, onde ela quer chegar e o que ela precisa.” Isso faz muita diferença, claro. Paula Leitão tirou o curso de Belas-Artes e uma pós-graduação em Gestão, Produção Cultural e Curadoria em França. Nasceu em Portugal, com ano e meio mudou-se com os pais emigrantes para a cidade francesa de Lyon.

Depois da especialização, queria fazer, organizar, planear, entrou no Instituto de Arte Contemporânea de Franche-Comté, em Besançon, organizou uma exposição de artistas portugueses, decidiu concorrer a uma bolsa europeia de seis meses, ouvia falar de Serralves que ainda estava em construção, tentou, não obteve resposta, enviou uma proposta ao Instituto de Arte Contemporânea em Lisboa, foi aceite, voou para Lisboa, ao fim de três meses, Fernando Calhau, que dirigia o instituto, convidou-a a ficar. Ficou. “Era uma oportunidade de conhecer melhor o meu país e o contexto artístico português.”

Em 2001, ficou com a responsabilidade de acompanhar dois artistas portugueses numa exposição a Washington, Pedro Croft e Joana Vasconcelos. Passaram uma semana juntos, Joana percebeu o que Paula fazia, de onde vinha, o seu trajeto. Seis anos depois, em 2007, quando Paula Leitão estava a pensar voltar a França, Joana convida-a a trabalhar no seu ateliê a tempo inteiro. Até hoje.

A ordem das músicas, o apoio emocional

As horas que Catarina Correia passa no restaurante não pesam, é a sua segunda casa, confessa, e é fácil trabalhar com o chef que almoça e janta com a sua equipa que trata como família. Não há horas combinadas para os telefonemas, acontecem quando têm de acontecer para tratar do que é necessário. A comunicação é diária e fluida. “Entendemo-nos muito bem. É um gosto trabalhar com ele, existe uma partilha muito grande”, admite a chef.

O músico Nuno Rafael tem várias tarefas, desde marcar ensaios, testar arranjos, definir a ordem das músicas a cantar em cada espetáculo. Ser diretor musical é isso. “É uma função que engloba orientar os elementos da banda em termos do que cada um pode contribuir, ideias para arranjos, pensar em alinhamentos para espetáculos com dinâmica, que não sejam monótonos, revisitando músicas mais antigas e renovando com novas canções.” O Sérgio gosta de juventude, de amigos a seu lado no palco, de colaborações e parcerias. Nuno Rafael sabe disso.

Trabalhar com Sérgio Godinho tem sido profícuo em vários sentidos. E fácil. “Dá sempre carta-branca para podermos interpretar as músicas com à-vontade como se fossem nossas, gosta de assistir e ouvir essas novas interpretações das suas músicas e depois cantá-las, músicas com outras vidas e com uma estética também nova.” “Não é uma pessoa que esteja sempre a apontar defeitos”, acrescenta. A partilha é fundamental, a troca de ideias, pensar como um todo. Tudo isso faz diferença num processo criativo em constante mutação. A cada disco, a cada espetáculo, há novos encontros de músicos e cantores.

Nuno Rafael é o diretor musical de Sérgio Godinho há 24 anos. Conheceram-se em 1996, Nuno Rafael estava nos Despe & Siga, a banda tinha disco para gravar, uma música sem letra, o grupo contactou Sérgio Godinho que aceitou imediatamente e escreveu as quadras e palavras da canção “Tou bom”. Fê-lo com gosto e em poucos dias. Um ano depois, Nuno Rafael é contactado para fazer os arranjos das guitarras para o disco “Domingo no Mundo” de Sérgio Godinho, aceitou, trabalhou em casa, foi para estúdio, gravou, correu bem. Foi convidado para fazer a direção musical do espetáculo “Godinho no Mundo”, fez os arranjos e coproduziu o disco “Lupa” com Hélder Gonçalves e formou os Assessores de Sérgio Godinho. Tomou as rédeas da direção musical de Sérgio. No início, ficou surpreendido com o convite, é autodidata, não tem formação musical. Tratou dos arranjos e da produção de cinco temas do álbum “O irmão do meio”, em 2002, e de todo o disco “Ligação direta”, em 2006. “São 24 anos consecutivos de estrada, de experiências, de concertos.” De muita cumplicidade, de horas e dias de conversas em casa do Sérgio, de ensaios, de palcos. “Foi um risco e foi bom, está a ser bom.”

O músico Nuno Rafael faz arranjos e marca ensaios. Está de volta à estrada, na tournée de abril “Liberdade” de Sérgio Godinho & Os Assessores, que criou. São mais de 20 anos de viagens e cumplicidades
(Foto: Nuno Brites/Global Imagens)

Ainda hoje Paulo Oliveira gosta de ver o prazer que o filho tem quando está em cima da mota e como continua a distinguir-se entre os pilotos. Uma alegria imensa, sentimento que não cabe no peito. É pai e agente do nome maior do motociclismo português, um dos pilotos mais cobiçados. “Tenho essas duas funções.” É fácil separar as águas? Tem sido. “De outra forma, teria sido impossível conseguirmos o que temos alcançado”, responde. Não havia propriamente um plano, as coisas foram acontecendo naturalmente. E a diversão e o puro prazer do desporto sempre foram importantes.

O apoio emocional também é fundamental. Quando corre bem, não faltam telefonemas e mensagens. Quando corre menos bem, não é bem assim. A família é o maior suporte. Pai, mãe, esposa. “Temos uma estratégia em que, de facto, nos apoiamos muito, no sentido de o ajudar a superar os momentos menos bons.” O que não é muito complexo. “O Miguel é uma pessoa superforte e que gere muito bem as suas emoções”, assegura Paulo Oliveira.

Segunda-feira passada, estavam os dois num avião a caminho dos Estados Unidos, hoje [dia 14] é o Grande Prémio das Américas de MotoGP, mais uma prova do campeonato do Mundo, em Austin. Miguel Oliveira vai correr.

Há uma frase que Paulo Oliveira diz muitas vezes ao filho: “Nunca deixes que ninguém te tire o valor”. E quando perguntam a Miguel Oliveira por que razão não contrata um agente profissional, ele pergunta se haverá alguém melhor do que o seu pai. A pergunta é retórica. Ele sabe a resposta. A resposta é, invariavelmente, não.