Que as pedras se tornem mais leves do que a água

Notícias Magazine

Há uns dias comecei a ler o último livro do Lobo Antunes. Até Que as Pedras se Tornem mais Leves Que a Água. Vou na página cento e tal. Escreve tão bem o sacana do homem. Uma vez entrevistei-o, com a Isabel Stilwell. Ele odiou a entrevista. Eu adorei, como o adorei a ele, embora tenha fingido que o detestei.

Arrogante. Snobe. Gozão. Displicente. As boutades, as citações do Faulkner, a inconveniência, a voz arrastada, «sabe?», os cigarros, as frases repetidas de entrevista em entrevista.

A olhar para nós sem nos ver. A mim pelo menos, nitidamente sem me ver. Não me ralei por causa de o ter adorado e porque os olhos azuis ou verdes, não sei, os olhos, e porque vai-se a ler e o homem vê tudo. Vê tudo como se fosse o deus que julga ser. Lá de cima, mas de dentro. Cruel e piedoso. Com uma violência atroz e uma ternura imensa.

De maneira que (não estou a tentar imitar-lhe a escrita, juro que não), de maneira que, dizia eu, depois de anos de zanga e de livros dele por ler acumulados na mesinha-de-cabeceira (compro todos), chegam os meus filhos e dão-me este pelo Natal.

O primeiro presente de Natal que recebi dos meus filhos, comprado com o dinheiro que juntaram do mealheiro de cada um, só porque me viram a namorá-lo na livraria. Mais demorada nele do que nos outros. Disfarço mal o amor.

No fim de semana passado, sem miúdos, comecei a lê-lo. Vou na página cento e tal e aquilo deve ter quase quinhentas, mas já a compreensão do que um homem (ou uma mulher) é capaz, de acordo com as circunstâncias. Ele a ver, lá de cima, mas de dentro. Cruel e piedoso. Com uma violência atroz e uma ternura imensa.

Angola, a guerra, a matança de homens, mulheres, crianças, pretos, brancos, o regresso, as pessoas escangalhadas, as vidas escangalhadas, os amores escangalhados (adoro a palavra escangalhado e, como isto é um texto sobre o Lobo Antunes, posso não só usá-la como repeti-la as vezes que quiser). E a matança. A par da matança do porco, na aldeia, algures no Norte.

O homem do livro, que foi para a guerra miúdo e matou e viu morrer e salvou um miúdo preto («este é meu, neste ninguém toca» – estou a citar de cor, não tenho aqui o livro), apesar dos avisos dos camaradas («quando crescer, vai vingar-se» – continuo a citar de cor), talvez morra às mãos do miúdo que salvou do meio dos pais pretos, mortos. Não sei, ainda só vou na página cento e tal, mas sei que se o filho se vingar será provavelmente pelas mesmas razões que o pai o salvou. É preciso sobreviver.

Quando acabar, digo-vos. Mas a verdade é esta: nos livros como na vida, tenho sempre esperança de que as pedras se tornem mais leves do que a água e as pessoas escolham viver em lugar de sobreviver.