O gafanhoto

Notícias Magazine

Há notícias que nos fazem pequeninos. Tantas vezes, depois de uma viagem às Beiras, me lamento: «Tenho de pôr água no limpa-vidros.» Umas vezes esqueço, outras lá ponho, e o meu para-brisas fica limpo a golpes de escova, sem que eu, nem ninguém, preste atenção ao milagre mecânico.

Confirmo, que vida pequenina, com que justa indiferença o mundo me trata! Tenho um Buick Roadmaster Riviera, de 1952, não haverá já muitos na Europa, se é que os há, e não é certamente pela modéstia da moldura que ninguém liga às moscas, aos mosquitos e até às borboletas que vão acolher-se ao meu para-brisas. Mesmo eu, confesso, enxoto-os sem estados de alma mas com água doseada por um produto a cheirar a pinheiro.

Um dia, um amigo fez-me suspender o gesto para o esguicho. Um inseto, largo como quatro dedos juntos, batera no vidro do automóvel. Encostei à berma, ele saiu, com mil cuidados descolou a massa informe, deitou-a num lenço branco que tirou do bolso e voltou ao carro.

Ainda havia uma asa incólume de borboleta, verde de musgo desenhando letras no fundo laranja, talvez um «m» e talvez um «u»… O meu amigo suspirou, como se estivéssemos nos Prazeres numa cerimónia: «É uma Anthocharis euphenoides, está em extinção.»

Talvez pelos complexos de culpa, apontei o nome. Anos depois, disse ao meu amigo: «Lembras-te daquela borboleta na estrada de Gouveia?» Não se lembrava. A minha passagem por este mundo arrisca-se a não ficar relacionada a nenhum encontro imediato com inseto, por mais nobre que este seja.

Devem compreender, agora, como recebi a badalada notícia sobre um dos 18 quadros de oliveiras que Van Gogh pintou no verão de 1889, tinha 36 anos e só mais um para viver. Nesse quadro, hoje pendurado num museu de Kansas City, reproduz-se um olival sob o forte Sol provençal. As árvores são dramáticas e retorcidas como nós portugueses as conhecemos.

Vincent van Gogh estava internado no Mosteiro de Saint-Paul de Mausole, asilo de malucos em Saint-Rémy-de-Provence. Meses antes, tinha cortado a orelha esquerda (e retratou-se ao espelho, parecendo a direita). No mosteiro, ele pintaria a célebre Noite Estrelada, mas a sua série de oliveiras é tão mística como aquele céu divino, de remoinhos azuis, a Lua e estrelas douradas.

Então, esse Olival de pinceladas retangulares e enérgicas, com sombras violetas no solo criadas pelas pequenas folhas cinzentas das oliveiras e o canto esquerdo pintalgado de papoulas. É Van Gogh, é magnífico, mas é magnífico muito por ser Van Gogh.

Naquele ano de 1899 ele pintou mais de 150 quadros e alguns fizeram esquecer este. Porém, na semana passada, a emoção mundial. O Olival tinha um passageiro clandestino: camuflado entre pinceladas de castanhos e azuis, um gafanhoto. Há 128 anos e só agora deram por ele. Mas deram.

Um simples Aiolopus thalassinus, como tantos na Europa, já sem barriga nem peito, mas mergulhado em arte. Assim o encontrou uma lupa no museu de Kansas City. A notícia correu mundo.

Van Gogh era pintor de passear entre paisagens, levava as telas pelos campos e voltava com elas aqui e ali riscadas por uma erva ou pintalgadas por moscas. Dürer tem um rinoceronte numa gravura, Vélasquez tem um cão em Las Meninas e cavalos na pintura inglesa é o que mais há. Mas o gafanhoto de Van Gogh tem o sentido místico que ele andava a procurar em Saint-Rémy-de-Provence. Foi um encontro entre duas obras-primas, a criatura da natureza e o frenesim do holandês.

Será que Van Gogh deu pelo encontro? Um paleo-entolologista do museu disse que a falta de sinais de movimento na tela dão a entender que o gafanhoto já aterrou morto entre as tintas. Não me vou pronunciar sobre o assunto, só dou conta da minha miserável inveja. Ninguém fala dos insetos da minha vida.