Todos os dias, hora de almoço, lá está ele, do outro lado da rua, junto ao café onde os que trabalham deste lado, terciários clássicos, fato e gravata ocasional, enfiam uma bucha para regressar rapidamente ao escritório. Pede, de mão estendida, rugosa, já passou há muito a meia-idade. Não é o clássico pedinte, não tem ar miserável. Parece só alguém a quem a vida tramou. O que anuncia, o desemprego, uma mulher doente, pode ou não ser verdade – a vida já me mostrou que não há demasiadas tragédias para uma pessoa só, quando o azar chega não tem medida certa. Alguma coisa lhe aconteceu que o trouxe até aqui. Onde ninguém devia estar.
O mundo contemporâneo espelha-se bem nas reações que tenho visto a este homem. Há os que dão qualquer coisa, nem que seja para alargar o garrote que se aperta no coração. Os que não ligam, anestesiados pela vida deles. E os que, sacudindo a má consciência, fazem acusações, que é para o álcool, ou pior. Como se a desgraça fosse autoinfligida. Como se a condição de ser pobre tivesse de funcionar sempre como acusação.
É mais ou menos o mesmo com o problema que aflige o mundo: a desigualdade. Há os que a percebem e os que a ignoram. Há os que acham que é inevitável e os que estão dispostos a arregaçar as mangas para encontrar uma solução. E há ainda os que estão dispostos a aproveitar-se dela para ganhar poder e influência. Entre todos está o nosso futuro a ser definido. Veja-se o caso de Donald Trump e dos populistas que ganham influência nas democracias ocidentais prometendo mundos e fundos aos deserdados da globalização: os novos pobres, os pobres trabalhadores, os sujeitos da «carnificina» americana de que Trump falou no discurso de tomada de posse.
Por cá, sempre com o atraso do costume, passámos a semana ao arrepio dos tempos, a levar com polémicas sobre o aumento do salário mínimo. Um padeiro moderno – mais preocupado com conceitos do que com a farinha dos pães que vende – criticou a subida e pediu mais formas de, aparentemente, explorar quem trabalha. Sinal de que os tempos mudaram, o discurso do rapaz foi acolhido com mais críticas do que aplausos. A seguir veio a líder de uma organização que ajuda os no fim da linha, o Banco Alimentar, a duvidar do interesse da subida do salário mínimo. Idem, a indignação.
Quem quiser compreender o mundo – e os políticos e os empresários são dos que mais têm interesse em fazê-lo – terá de ter em conta o que se está a passar. Não se engrossa uma multidão de descontentes impunemente, ou sem acarretar com as consequências. E esta, a multidão dos deserdados do liberalismo, da globalização selvagem está cada vez maior, sem esperança de diminuição: o trabalho escasseia, o bem remunerado ainda mais, as oportunidades aparecem a quem está dentro do circuito. Não há inquietação, apenas estagnação.
Que ninguém se engane, isto não é linguagem bafienta. É da mais moderna análise social. O mundo está a mudar – e já há quem se esteja a aproveitar disso.
[Publicado na edição em papel da Notícias Magazine de 5 de fevereiro de 2017]