Todas as formas de intolerância se assemelham, mas só uma parte dessas manifestações da estupidez humana tem consequências graves. Em alguns casos, os intransigentes limitam-se a ser desagradáveis, inconvenientes ou ridículos.
Há quase trinta anos estive com amigos no bar do Hot Club à mesma hora a que, na televisão, passava o Domingo Desportivo. Os resumos da jornada interessaram-nos, mas a fruição do programa foi interrompida pela intervenção de um conhecido cançonetista de boina e bigode, com sotaque alentejano (não denunciarei o meliante para evitar complicações jurídicas), o qual arrancou a ficha do televisor com um gesto excessivo.
Não havia no nosso grupo nenhum amante da bola que fosse simultaneamente tão valentão como o cantor, pelo que a intempestiva erupção do indivíduo se resolveu com um encolher de ombros e sem direito a tabefes. Proverbialmente condescendente, passei, todavia, a dispensar à carreira musical do sujeito o mesmo tratamento por ele dedicado à ficha do televisor – e não se falou mais disso.
Apenas recordo este episódio por ter começado anteontem mais um Campeonato da Europa de Futebol e ser já capaz de antecipar algumas das inúmeras quezílias domésticas que resultarão da transmissão diária de jogos em canal aberto. Observador atento de fenómenos sociológicos relevantes, encontrar-me-ão, por isso, devidamente sentado e transportado para um universo paralelo em que me alieno um pouco e dou pontapés no ar como se regressado ao pelado primordial onde os rapazes aprendem a ser gente rasgando os joelhos.
Não adiantará discutir, por isso, se os embates entre a Turquia e a Croácia ou entre a Roménia e a Albânia são ou não mais imperdíveis do que o episódio 3846 de Coração de Ouro ou de A Única Mulher. Do mesmo modo que não deve questionar-se o elevado interesse cultural do Lago dos Cisnes ainda que se ignore o que seja um battement tendu, não é conveniente disputar a primazia do futebol sobre (quase) todas as coisas. Para evitar aborrecimentos, deve seguir-se o exemplo da UEFA e recorrer à tecnologia. Melhor do que o «olho de águia» para aferir se a bola entrou na baliza, o gravador da box da TV por cabo há de, nas próximas semanas, ser um auxiliar fundamental da paz social europeia.
(Fotografia por Manuel Jorge Marmelo)
[Publicado originalmente na edição de 12 de junho de 2016]