O jogo de aparências da fruta falsamente bonita

Notícias Magazine

Os supermercados insistem em vender fruta bonita mas que não sabe a nada. Porquê se isso leva ao desperdício?

Esta semana ouvi insistente na rádio um apelo a que os miúdos levem fruta para o lanche da escola. Ao que parece, os petizes preferem pães com chocolate e mistelas açucaradas. A surpresa não é que eles prefiram – isso é até previsível, diria –, a surpresa é que os pais deixem. A campanha é da Associação Portuguesa da Obesidade Infantil.

Uma parte disto deve ter a ver com o facto de a fruta se ter afastado da realidade da vida de algumas famílias. Por causa do preço e por dois motivos relacionados com ele. O pesar em algumas bolsas, sim. E o facto de já nos termos habituado a que comprar fruta barata pode significar comprar fruta sem gosto. Nunca consegui confirmar se uma fruta sem gosto vale o mesmo, nutricionalmente, que uma com gosto. O que fiz foi passar a comprar fruta melhor.

Quando fechou a mercearia onde comprava laranjas sumarentas, ou peras rochas saborosas, entrei em pânico. Pequeno parêntesis sinal dos tempos: a mercearia dos dois senhores velhinhos que traziam os vegetais da zona saloia, de manhã, e recebiam pão de Mafra fresco, fechou para ser reaberta um mês mais tarde com dois paquistaneses à frente, que recebiam toda a mercadoria das mesmas carrinhas brancas – fruta, pão ou outra coisa qualquer. E tudo sabia ao mesmo: a nada. Mais tarde, a loja acabou por fechar – talvez devido à concorrência dos mais cinco estabelecimentos similares que abriram nas imediações. Diria que cumpriu o seu papel e tornou-se um restaurante da moda – pressão imobiliária do centro oblige.

Os novos e modernos donos aproveitaram os antigos armários. Vá, nem tudo se perdeu. Só as laranjas sumarentas. Agora, ou compro no supermercado de cadeia, ao lado, anódino e seco com iguais citrinos, ou tenho de me meter no carro e ir à mercearia mais próxima, que se situa a vários quilómetros. Ou então ao mercado biológico, onde a fruta é feia e cara mas sabe a qualquer coisa.

E era aqui, precisamente, que queria chegar. A fruta que se vende no supermercado é normalizada na sua beleza, mas quem foi já pelo menos duas vezes ao supermercado sabe que há muita possibilidade de não ter sabor nenhum. Então porque continua a ser assim? Porque é que os distribuidores – os portugueses e os outros – continuam a jogar este jogo de aparências?

Isto é tanto mais estúpido quando a própria FAO indica que são desperdiçadas por ano 1,3 mil milhões de toneladas de comida e muitos são os produtos de origem vegetal rejeitados porque não são bonitos. Em Portugal chegamos a deitar fora 17% do que é produzido – em média os agricultores têm de pôr para o lado cerca de trinta por cento. Parece o jogo de aparências em que a política se transformou – aquilo que já percebemos que o povo rejeita, mas em que insistimos porque sempre se fez assim. Um dia talvez acordemos. Em ambas as matérias.

[Publicado originalmente na edição de 26 de fevereiro de 2017]