Uma obsessão chamada Ronaldo

Notícias Magazine

Se ganhamos ou perdemos, a responsabilidade é sempre dele. Mas como pode um país minúsculo odiar tanto um ídolo sem pés de barro como ele é?

As primeiras impressões contam? Diz o povo que sim, mas como já provou o jornalista americano Malcolm Gladwell, no seu livro Blink, nem sempre é assim. Para que essas impressões contem, temos de evitar que os nossos pré-juízos e preconceitos atuem sobre elas. De outra forma podemos estar apenas a usar as nossas primeiras impressões como reforço do que já achávamos sobre alguma coisa.

Trago esta tese aqui para vos falar de Cristiano Ronaldo. Ídolo que é ídolo não precisa de ter pés de barro para ser divisor de opiniões. Isso faz parte da natureza dos ídolos. E Ronaldo até nem tem pés de barro. Do sentido figurado da frase falaremos daqui a pouco. Do literal, basta dizer que tem nos pés a maior força do seu corpo. O facto de sabermos todos muito sobre ele, de estarmos atentos, leva-nos a achar que podemos mandar todos os bitaites que quisermos.

Na verdade podemos, não devemos é cometer o erro de achar que o que achamos é a verdade. Ou que chega à essência dele. Se ri ou se chora. Se corta o cabelo ou se devia jogar mais em equipa. Ou, até, como o cronista do El País fez, na semana passada, se é ou não feliz. Esta última crónica de John Carlin representou o corolário dos maus fígados em relação a Ronaldo. Das críticas veladas às ofensas espalhafatosas, sob anonimato, nas redes sociais, nos jornais, Carlin bateu todos os recordes quando puxou da figura paterna para explicar a «infelicidade» de Ronaldo.

No fundo, tem tudo que ver com o mesmo: Cristiano Ronaldo continua a ser vítima das primeiras impressões. Mesmo se para quase ninguém no mundo ele é uma novidade. Quando começou a ser conhecido, já era o sonho de qualquer rapaz de 16 anos. O dono da bola. Leva, por isso, estes anos e anos todos sendo alvo de inveja, com o consequente escrutínio que isso sempre acarreta. No caso dele, essa exposição brutal fez que as primeiras impressões se fossem sedimentando, prolongando e dando origem às críticas.

É fácil odiar Cristiano Ronaldo. Sobretudo à primeira vista. Ele é bom – oh, tão bom – faz o que gosta – e isso é tão visível – e sabe que é bom e faz o que gosta – não tendo, portanto, falsas modéstias, ostentando, até, alguma vaidade. Depois, não tem uma vida de acordo com o que mandam as convenções, não tem namorada fixa, tem um filho de que não se sabe a origem, vive com a família, tem dinheiro a rodos que gasta como quer, nomeadamente em férias observadas ao milímetro e fotografadas em revistas sociais. Campo de tiro aberto, portanto.

Odiar Cristiano Ronaldo é fácil – mas é verdadeiramente estúpido. Sobretudo num país minúsculo como Portugal. Além de ser o melhor, ele é o exemplo tantas vezes referido de trabalhador incansável, de pessoa que sabe – como poucas, por cá – que o talento, ou até os truques, de pouco valem sem trabalho, sem muito trabalho. Não lhe são conhecidas as tonterias de que falou o cronista do El País. Antes pelo contrário, é até estranho que numa vida tão escrutinada não se conheçam mais escândalos ou atos reprováveis. É tão bom que alguém como ele seja o português mais famoso do mundo, que só pode ser cegueira participar nessa atividade nacional do tiro ao Ronaldo.

*Tudo isto foi escrito antes de conhecer o resultado do Hungria-Portugal e Croácia-Portugal, porque nada nesses resultados alteraria o rumo desta crónica.

[Publicado originalmente na edição de 26 de junho de 2016]