O meu vizinho V. S. Naipaul

Notícias Magazine

Um dia escrevi sobre V. S. Naipaul porque ele fazia anos. Hoje volto a escrever porque ele faz 84 anos, um mês e um dia ou porque ele é entrevistado nesta edição ou porque um dia destes ele vem cá, a Óbidos. Há sempre razões para escrever sobre Naipaul. Eu, pelo menos, tenho as minhas razões. Afinal de contas pesa ter um prémio Nobel de Literatura que viveu na minha rua.

Aliás, o primeiro livro que ele escreveu foi sobre a nossa rua e homenageou-a logo no título: Miguel Street. Os editores londrinos começaram por não querer saber dos contos (eram contos sobre a nossa rua) e com a hesitação, Naipaul aproveitou para mudar o título inicial, Luis Street, que é o verdadeiro nome da nossa rua.

Na nossa cidade, as ruas chamavam-se streets, porque estavam numa colónia britânica. Algumas ruas tinham nomes portugueses, porque na cidade havia-os, e muitos. Ela chama-se Port of Spain, porque antes fora espanhola, desde que foi descoberta numa das viagens de Cristóvão Colombo. Fica em Trinidad, a última ilha, para quem desce, do arco das ilhas caribenhas, logo antes de se chegar à América do Sul.

Isso em mapa-mundo. Focando na nossa rua, a Luis Street, a mesma ideia de cruzamentos de povos. Havia sobretudo negros e indianos, e também portugueses – os americanos passavam por lá de jipe, militares da base militar. Para dizer a verdade, eu não nasci bem, bem, na Rua Luis e até nem foi em Port of Spain e, para dizer tudo de uma vez, foi noutro continente. Isso não impede, claro, que eu tenha nascido na minha Luis Street, apesar de só a ter visitado depois dos 50. Também é pouco provável termo-nos cruzado na rua, eu e o Vidia (é a solução para o mistério do V. do seu nome). Naipaul fala da infância e adolescência, com a Segunda Guerra Mundial pelo meio, e eu ainda não tinha nascido.

Mas é a minha rua, insisto. Havia lá um carpinteiro que tinha este capricho: nunca acabava a obra em que estava metido. A música era transmitida pelo bater em pans. Hoje que se fala muito em economia sustentável devia aprender-se com essa lição antiga. Trinidad começava a produzir petróleo e os bidões, além de royalties, davam sons: devidamente cortados, os tambores metálicos inventaram o calipso.

O primeiro personagem que aparece em Miguel Street é o Bogart, uma homenagem a esse que vocês estão a pensar. A nossa cidade, apesar de ser uma bela pasmaceira com palmeiras e rum, era cosmopolita. Poucos quarteirões depois da Luis Street, havia o Queens Park Savannah, bordejado por casas vitorianas, com os seus telhados em torres pontiagudas, os beirais picotados como tricôs e varandas. Havia lá um hotel onde as Andrew Sisters, um coro fraterno, lançaram o Rum & Coca-Cola, em honra de outra fraternidade, a trinidadiana-americana, que foi o maior sucesso musical durante a Segunda Guerra Mundial. O dono do hotel era também o do rum Fernandes (infelizmente, nada a ver, só sou amigo do filho).

O meu vizinho V. S. Naipaul chegou à nossa rua vindo do interior da ilha, das plantações de açúcar dos seus avós, imigrantes de Calcutá – tal como os madeirenses que foram para o mesmo. Que se tenham importado indianos (east indians, como dizem os ingleses) para as Índias Ocidentais (West Indies) de que faz parte Trinidad, foi, no fundo, o fechar do ciclo da confusão inicial de Colombo, que chegou à América e julgou-a Índia.

Isto para vos dizer que, para lá do livrinho sobre a minha rua, o grande V. S. Naipaul nasceu para perceber o mundo.

[Publicado originalmente na edição de 18 de setembro de 2016]