Polícias agredidos em serviço. Um fenómeno por compreender

Um agente da autoridade leva um soco na cara à porta de uma urgência. Outro leva um murro, cai, é esmurrado no chão à entrada de um hospital - e ninguém se mete. Outro é mordido no braço e fica com o ligamento do osso de um dedo rasgado num hipermercado. Uma mulher é empurrada e ameaçada de morte num café. Sentem-se destratados e desconsiderados na sua missão, vestidos de farda, em representação do Estado. Há cirurgias, abalos emocionais, baixas médicas, para contar. É como um iceberg: o que não se vê é muito maior do que o que está à mostra.

A situação foi relatada em jornais e telejornais. Oito de julho do ano passado, à porta da urgência do Hospital de Viseu, está um polícia em serviço, um homem sai disparado em sua direção com a mãe a tentar agarrar-lhe o braço, para evitar uma desgraça, não consegue, avisa que o filho quer matar o agente. O polícia está sozinho, recua, recua uns 40 metros até que decide atuar. O gás pimenta não funciona, não percebe porquê, a botija de gás está cheia, insiste, olha para a patilha de segurança e, nesse momento, é agarrado. “O indivíduo alcança-me com a mão direita, agarra-me a parte de trás da cabeça, dá-me um soco violento no lado direito com a mão esquerda, caí no chão.” O agressor tem 1,92 metros de altura, o polícia 1,66.

As agressões continuam. “No chão, enquanto ele estava a dar-me murros na parte de cima da cabeça, puxei do bastão policial e desferi várias pancadas na perna esquerda e ele caiu.” O polícia levanta-se, consegue algemá-lo, pede ajuda aos colegas da esquadra. Tem a mão ferida, dores nas zonas de impacto, um zumbido como se o coração estivesse a bater-lhe na cabeça. Nesse sábado, trata do processo, contacta o procurador de turno que diz para libertar o agressor e notificá-lo para comparecer em tribunal na segunda-feira, o habitual nestas situações. “Um indivíduo, que nunca tinha visto, agrediu-me de forma deliberada, espontânea e consciente do que estava a fazer”, conta o polícia de 49 anos, 28 de serviço, que não quer nome, nem fotografia. “Estava ali no dia errado, à hora errada”, desabafa.

“Rui”, mudemos-lhe o nome, tem no polegar da mão direita uma história para contar. Essa é a marca física, há outras que não se veem. Agosto de 2021, num hipermercado de Vila Nova de Gaia, um homem agride o segurança que se apercebe de algo errado, suspeita de um eventual assalto. Um civil alerta o polícia que vai ver o que se passa no interior do estabelecimento. O homem não reage da melhor forma, tenta fugir, o polícia alcança-o, ouve alguém dizer: cuidado com a faca. “Estava a algemá-lo, ele resiste, não consigo explicar como consegui tirar-lhe a faca, deu-me uma ferradela no braço, sacudiu-me para fugir e a força foi tão grande que me arrancou o ligamento do osso do polegar da mão direita.” Com as dores, larga-o, alguém passa-lhe uma rasteira, o agressor cai, o segurança agarra-o até chegarem reforços. É tudo muito rápido, uma fração de segundos. “Nunca esperei passar por isto”, confessa. O braço fica inchado, tem de ser operado à mão para conseguir mexer o dedo. Um ano de baixa, quando regressa, quatro meses em serviços moderados. São 21 anos ao serviço da Polícia. “São dores para a vida toda.”

“Ana”, chamemos-lhe assim, jamais esquecerá aquele início de noite que parecia não ter fim. Tinha chegado há pouco tempo a uma esquadra do norte do país, vinda de Lisboa, tinha calo de rua, 13 anos de Polícia. “Recebemos uma chamada de ruído, quando assim é, não sabemos para o que vamos, pode ser grave ou pode ser ligeiro.” O telefonema é do dono de um café, há muito barulho, desacatos, quer fechar o estabelecimento, não consegue. “Ana” e o colega de patrulha dirigiram-se ao local. Ele sai, ela fica ao volante da viatura policial. “De repente, o meu colega estava dentro de uma bolha”, recorda. Gente à volta, ele é que tem o rádio para chamar reforços. “Ana” sai do carro, tenta chegar ao colega, pede calma. “Lá consegui desviar algumas pessoas lentamente, cheguei ao meu colega, puxei-o, e ao puxá-lo ficámos os dois dentro da bolha.” O colega sem reação, ela diz-lhe para não usar o rádio, receia o pior, agarra-o pelo braço, pede para os deixarem passar. Sempre numa roda, empurrados e ameaçados: “Vocês vão morrer aqui, vieram para aqui, vão morrer aqui”. Teme pela integridade física, sabe que tinha de manter sangue-frio. “Olhava para o carro, a preocupação de não nos fazerem nada, de não fazerem nada na viatura, lá fomos muito lentamente, dizia ‘deixem-nos passar, nós vamos embora, não vamos fazer nada’, a acalmar os ânimos, a ouvirmos ‘vocês vão morrer aqui’, comecei a tremer, claro, lá conseguimos chegar ao carro, eles à volta da viatura a assustar, a ameaçar.” “Ana” ligou os pirilampos azuis e acelerou até à esquadra.

Voltar ao café ou não voltar? Só havia um carro, só os dois de patrulha, os reforços demorariam, o chefe da esquadra decide que não se voltaria ao café. Não havia condições, nem logísticas, nem emocionais. “Na primeira semana, foi muito difícil, não dormia, mexeu muito comigo”, diz. “É uma coisa que fica, a que me marcou mais.” Foi há 12 anos e não esquece.

Cristiano Correia dá o nome, é polícia, quando acabou a formação, ficou em Lisboa, cumprindo o percurso inicial habitual de quem escolhe a profissão. Está no Porto desde 2008. Num serviço à porta da antiga urgência do Hospital de Vila Nova de Gaia, é agredido com um soco. Há um aglomerado de gente à entrada do serviço de emergência, pessoas à espera, o clima é tenso, há um carro que estaciona, pede ao condutor para tirar dali a viatura porque não pode estar naquele local, há ambulâncias em movimento. Outro homem sai desse carro e agride-o com um soco na cara. Fica sem reação, o homem sai dali muito rapidamente, não dá para o deter. Contacta o hospital, trata do expediente, o caso é arquivado. “Foi um processo difícil, estava numa fase inicial da carreira, estava bem. Ninguém gosta de na sua profissão ter um episódio de agressão, ninguém gosta de ser agredido quando está a cumprir a sua missão policial.” Hoje poderia ter sido diferente. Cristiano Correia sabe o escrutínio que paira sobre as forças da autoridade. “Nunca é bom um polícia, que impõe a lei e protege a segurança, ser agredido.” Não pensou desistir. “Sair não, senti-me um pouco isolado, ultrapassei a questão, foi um período de alguma reflexão pessoal, de reação ao episódio.” Cristiano Correia já tinha quatro anos de Lisboa, experiência de equipa de intervenção, numa cidade enorme, com muita diversão noturna e bairros problemáticos, muitos casos de resistência, alguma agressividade. São 45 anos de vida, 20 de Polícia.

“Não posso ser a vítima e o vilão”

Para Cristiano Correia, o fenómeno da agressão aos elementos das forças de segurança tem de ser analisado a fundo, com mais seriedade, de vários ângulos. Mais do que os números, que são relevantes para mostrar a dimensão do problema, é preciso compreender os contextos. “É importante acompanhar este fenómeno, e vejo que tem sido feito um esforço, mas é necessário compreender a natureza qualitativa, a natureza de cada episódio, o enquadramento, até para antecipar cenários”, refere.

Há coisas a fazer, considera. Falar de prevenção e melhorá-la, trabalhar e não menosprezar a motivação dos agentes da Polícia, valorizar e não desconsiderar a profissão, analisar e entender a conjuntura das condições socioprofissionais da Polícia. “Perceber se estão criadas as condições para um clima de serenidade, de tranquilidade, para garantir a missão e impor as regras de funcionamento da sociedade.” Tudo isso lhe parece necessário. “Quando há um episódio, há duas partes, momentos de tensão entre pessoas, entre grupos, e catalogar é perigoso, rapidamente tudo é catalogado e não percebemos a dinâmica do episódio”, avisa. “Não posso ser a vítima e amanhã ser o vilão porque agredi uma pessoa. Sou o mesmo, sou a mesma pessoa. Não tem havido espaço para refletir sobre estas coisas. Nem compreendemos o fenómeno, nem conseguimos evitá-lo. Não me alimento das agressões, trabalho para evitar a próxima agressão”, garante.

“Perdemos autoridade, massacram-nos bastante, não podemos fazer nada, somos maltratados nas chamadas, as pessoas andam com facas e com armas, faltam-nos ao respeito”, reconhece “Ana”

Os números mostram um panorama preocupante. Uma média de 75 polícias agredidos por mês no ano passado, entre janeiro e agosto contaram-se cerca de 1300 agressões aos agentes da autoridade. Paulo Santos, presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP), não tem números oficiais recentes, mas pelo acompanhamento que faz de norte a sul, estima “um aumento exponencial”. “Uma coisa nós sabemos e é evidente: os polícias são aqueles que estão na primeira linha do embate, na primeira linha de atuação, os que estão mais sujeitos ao risco”, adianta.

Uma chamada normal para uma esquadra pode tornar-se facilmente numa ocorrência anormal, complicada, violenta, no terreno. Daí que a estrutura sindical continue preocupada com as agressões sofridas e suicídios registados de quem representa o Estado. Essa é outra questão. “O discurso político é sempre que o polícia representa o Estado, mas isso não passa de uma narrativa, apesar de ser verdade.” Paulo Santos entende os desabafos constantes dos colegas que se sentem destratados e desconsiderados. “Parece-me que os polícias são descartáveis e percebo esse sentimento de revolta e de desconsideração.”

O polegar do polícia agredido no hipermercado, em Vila Nova de Gaia, não mexe da mesma forma. Dois anos e sete meses depois, ainda não houve julgamento, não sabe o que vai acontecer. “Psicologicamente, não foi fácil, foram meses muito difíceis, e o mal foi meu”, comenta. Não vê o cenário a melhorar. “Com a impunidade que tem havido, este tipo de situações vai-se tornar mais recorrente e pior, se bater a um polícia é normal e não acontece nada. Se o Estado permite, é o Estado de Direito que fica em causa, não é respeitar o Estado e é pôr em causa a sociedade.” Percebe o porquê de menos gente se candidatar à Polícia. Na sua altura, eram 17 mil para 750 vagas, agora são muito menos. “Não somos robôs, temos família e contas para pagar.”

Na semana seguinte à agressão, além do abalo psicológico, o polícia de Viseu sentiu dores. “Comecei a ter dores nas costas, na anca e na perna esquerda”, lembra. Tinha uma inflamação no nervo ciático que lhe prendia a perna esquerda. “O médico receitou uns comprimidos para a inflamação do nervo ciático, a inflamação passa, mantém-se uma dor.” Mais uma semana, as dores não passavam, eram violentas, meteu baixa, o médico da Polícia encaminhou-o para um neurocirurgião.

Fez exames, detetaram-lhe uma hérnia que estava a comprimir-lhe o nervo ciático. Há uma relação de causa-efeito entre a agressão e o estado de saúde, afiança. “Quando caí, senti uma dor nas costas e na anca, com os trambolhões que dei, a inflamação surgiu, a hérnia já estaria lá e começou a comprimir o nervo.” É operado precisamente quatro meses depois da agressão, a 8 de novembro de 2023. Seguiu-se a recuperação, fisioterapia, esteve de baixa oito meses e meio, acaba de regressar ao serviço.

Impunidade e processos arquivados

O Observatório Permanente Violência e Crime (OPVC), da Universidade Fernando Pessoa, do Porto, pretende estudar a violência sobre os agentes de segurança. A ideia é compreender o fenómeno, ir a fundo, fazer inquéritos e entrevistas capazes de perceber a quantidade de casos ocorridos e não declarados, as chamadas “cifras negras”, bem como conhecer contextos geográficos, sociais e temporais das ocorrências, situações em que os riscos são agravados, traumas e necessidades das vítimas e o impacto no modo de atuar e nas suas vidas. O projeto, ainda em fase embrionária e que será candidato a financiamento, vai observar, medir e descrever essa realidade e poderá apontar caminhos na adoção de medidas por parte das entidades públicas responsáveis.

“Os atos de violência contra agentes da autoridade têm sido, com recorrência, descritos nos órgãos de comunicação social e referidos com preocupação pela tutela porque, sendo contranatura, apresentam números preocupantes e derivam de um conjunto de fatores sobre os quais não existem dados concretos e, muito menos, condições que, por conjugação, potenciam a produção de explicações sobre esta realidade”, repara o sociólogo Rui Maia, coordenador do OPVC, professor na Universidade Fernando Pessoa.

O assunto tem sido debatido, fala-se em impunidade, em crimes contra agentes de autoridade que permanecem na invisibilidade, incapacidade de investigar, processos arquivados. O estudo vai procurar explicações, nas causas e consequências, e dar respostas para a construção de modelos preventivos e de cenários de intervenção que permitam racionalizar recursos e relacionar informações. “As ações contra a integridade dos agentes de segurança ganham relevo porque, justamente, sincretizam a ineficácia relativa da função defensiva do Estado que, pela sua ação, deve ser assegurada e, com ela, a do cultivo do sentimento de impunidade por parte dos seus responsáveis. E, por outro lado, a nefasta dimensão psíquica sobre as vítimas atingidas nas suas dignidades profissionais e sociais, o que, em certa medida, justificará a não formalização das ocorrências”, sublinha Rui Maia.

Nos últimos dez anos, “Ana” viu muita coisa acontecer. “Mudou muita coisa, perdemos autoridade, o respeito, massacram-nos bastante, não podemos fazer nada, somos maltratados nas chamadas, as pessoas andam com facas e com armas, faltam-nos ao respeito.” Para “Ana”, as ideias que passam para fora são erradas, sente que a Polícia está a ser desconsiderada, pela sociedade e pela comunicação social. “Continuam a passar para fora que a Polícia não tem autoridade.” O que tem consequências em quem lá está, em quem tenta manter a ordem pública, zelar pela segurança, proteger os cidadãos. “Somos poucos, há muitas ocorrências. Não somos respeitados como éramos há 15 anos, veem um polícia como um alvo a abater”, salienta.

Para Paulo Santos, da ASPP, é preciso perceber que as dinâmicas sociais mudaram. Costuma dizer, como exemplo meramente ilustrativo, que se um jovem não respeita o pai e mãe, não respeita o professor, também não respeitará a Polícia. “As dinâmicas sociais são diferentes e têm repercussões no serviço da própria polícia que é chamada a muitas situações que de polícia não têm nada.” “O serviço policial está mais arriscado, mais complexo, mais complicado”, acrescenta Paulo Santos, que aconselha os colegas agredidos a denunciarem, a pedirem a proteção judicial que lhes é devida, mesmo que não haja muito apoio. “Da parte da instituição, nunca chega a haver acompanhamento para saber o que aconteceu ao polícia, acautelar o seu futuro, preservar a sua situação”, afirma. O presidente da ASPP defende formação de um lado e do outro. Para os agentes da autoridade saberem como responder e o que fazer nessas situações. E para a sociedade no sentido, realça, “de uma maior cultura de pedagogia, de formação” em nome do respeito de quem veste uma farda e representa o Estado.

O processo do polícia de Viseu está em fase de inquérito, pediu ao tribunal uma avaliação do dano corporal, quer saber a percentagem de incapacidade para o julgamento ser o mais justo possível, todas as despesas têm sido por sua conta. “O dinheiro que já gastei. Pago medicação e consultas, tudo do meu bolso, meto as despesas na Polícia no âmbito do processo, demorará dois ou três anos para receber.” Além disso, e neste período de baixa, os gratificados que não recebeu.

O que se passou naquele 8 de julho de 2023? O polícia de Viseu veio a saber que o indivíduo que o agrediu estava numa consulta de psiquiatria, ficou insatisfeito com a decisão da médica, saiu disparado para bater no polícia, apenas nele e em mais ninguém. “Dezenas de pessoas assistiram, ninguém ajudou, as pessoas não se metem.” Ficou também a saber que a botija do gás pimenta não funcionou porque estava fora de validade. E surge aquele tom de desencanto. “Nunca há justiça para o polícia que é destratado, desconsiderado. A vida da rua está cada vez mais difícil, as pessoas sentem que a justiça não funciona e sentem liberdade para fazer o que lhes apetecer.”

E, eles, hoje como amanhã, vestem as fardas e saem em serviço, para impor a ordem e acautelar a segurança, sem nunca saber o dia que os espera. O que pode acontecer.