Artistas que ainda vivem fora das redes sociais

É como procurar uma agulha num palheiro. São poucos, muito poucos, os músicos, atores, escritores, artistas, que não estão nas “montras” de exposição permanente. Nada contra, garantem, percebem esse modo de funcionar, o fascínio, a euforia. O ator Hélder Agapito, o maestro António Victorino d’Almeida, o escritor Gonçalo M. Tavares estão do lado de fora, decidiram não entrar, tal como o humorista Ricardo Araújo Pereira, e não se consideram prejudicados nas suas artes. Não estão lá e existem.

Certo dia, o ator Hélder Agapito estava numa mercearia ao pé de casa, um realizador da Geórgia andava por lá às compras, o dono do espaço percebeu a afinidade artística, colocou-os à conversa. A dada altura, o cineasta de telemóvel na mão, de olhos postos no pequeno ecrã do aparelho e dedos preparados, pergunta-lhe: “Onde te posso encontrar?” O ator responde-lhe: “Aqui, eu moro aqui”. Nas redes, ninguém o encontra. Porquê, perguntamos nós? “Não há uma razão.” “Gosto mais de viver do que estar nas redes”, acrescenta poucos minutos depois.

A agente do ator já tentou convencê-lo a ter redes sociais. Da última vez, com argumentos de peso (que ele decalca nas palavras dela): “Fazes tanta coisa que as pessoas não sabem”. Agapito desenha, toca guitarra, compõe música, está a começar a tocar piano. Um post sobre cada uma dessas atividades e o Mundo saberia que não faz apenas televisão e teatro. Mesmo assim, não quer.

António Victorino d’Almeida também não tem. Nada como confirmar na primeira pergunta. O maestro tem redes sociais? “Acho que não, que eu tenha conhecimento.” A página com o seu nome no Facebook, sem publicações há alguns anos, não é da sua lavra, nunca lá entrou, nunca por lá andou, assim, de repente, terá sido a filha mais nova que tomou essa iniciativa, não se lembra bem. Não sabe o que lá está, o que por lá anda, anúncios de concertos, textos partilhados que escreveu para outros sítios e ocasiões específicas. Redes sociais, porque não? “Sinceramente, vivo bem sem isso”, responde o maestro.

O maestro é adepto entusiasta da novidade, garante, das coisas novas, com uma condição de peso, ou seja, que venham por bem, que alterem para melhor. Não lhe parece ser propriamente o caso das redes sociais. E dá um exemplo: ouvir música, não uma peça completa, ouvir uma parte e passar para outra música e para outra e depois para outra, e mais uma, uma parte aqui, uma parte ali, a saltitar, e não escutar um trecho completo, do início ao fim. Não lhe parece que a música deva ser escutada desta forma numa arte que lhe diz particular respeito. É como ler a primeira quadra de um soneto de Camões e passar para um poema de Antero de Quental, mais uma ou duas quadras, sem absorver a poesia completa. “Ainda não vi pessoas mais cultas por existirem redes sociais. Pelo contrário, as pessoas cada vez sabem menos”, comenta.

O escritor Gonçalo M. Tavares nunca teve redes sociais, quer estar concentrado no seu trabalho, na escrita. “Desde os 18 anos que sou um bicho disciplinado”, conta. Nada contra as redes sociais, esclarece. “No meu caso, tem sido uma opção de concentração, de aproveitamento do tempo porque, de uma maneira ou de outra, as redes sociais provocam dispersão”, justifica. Concentração e disciplina. Escreve, as editoras tratam da promoção, as instituições que o convidam divulgam os acontecimentos. “Tem funcionado assim, ou seja, um criador deve estar essencialmente concentrado no ato da criação, no meu caso, no ato da escrita.”

Hélder Agapito, ator
(Foto: Rui Carlos Mateus)

Hélder Agapito tem 38 anos e nenhuma presença numa rede social nem na adolescência, nem na juventude, nem hoje. O mais parecido que usou, recorda, foi o mIRC, um chat de conversa. Hoje, volta e meia, alguém tira uma fotografia de grupo, quer partilhar e identificá-lo, pergunta-lhe qual o nome no Insta, ai a cabeça, então, claro, Agapito não está nas redes. Este universo não lhe é desconhecido, a namorada tem e usa, mostra-lhe algumas coisas. “Eu percebo isso tudo, o voyeurismo, a curiosidade”, admite o ator. Até há algo que considera curioso no Instagram. “Essa cena engraçada de descobrir coisas que, de outra forma, não chegaria lá. Com dois ou três cliques chegamos a coisas que nada têm a ver com o que ali está.” Ou seja, uma imagem remete para mil e uma coisas – uma fotografia de Portugal e, de repente, uma cabana nas Maldivas.

Não está nas redes e trabalho não lhe falta. “Tenho trabalho sem estar nas redes, faço bem o meu trabalho, deve ser por isso”, graceja o ator. Estar fora desse mundo, até lhe dá uma certa calma. “Como não me exponho, dá-me uma liberdade criativa nos meus trabalhos”, adianta. Sem essa exposição permanente, ora põe isto, ora põe aquilo, ora ver os comentários, ora responder, os dias são mais sossegados. “Em termos de trabalho, não tem sido uma preocupação. Nunca senti que não estar nas redes fosse um entrave, mas tenho noção de se poder tirar mais dividendos estando nas redes, é uma coisa que chega a muitas pessoas”, refere. Neste momento, Agapito está em gravações da telenovela da SIC “Senhora do mar”, onde veste a pele do engenheiro informático Jesus Costa. Uma pitada de ironia do destino nesta ficção.

Mesmo do lado de fora, é assunto que interessa a Agapito. “Com as redes, as pessoas podem fazer o que querem, está nas suas mãos o que querem mostrar. Por outro lado, já não se pode dizer nada, qualquer coisa que se diga vai ser um grande problema e cai o mundo em cima.” Parece-lhe, diz, “uma liberdade meio espartilhada”.

A origem, os conteúdos, os resultados

Talvez estas novas ferramentas pudessem ser aproveitadas de outra maneira, talvez, indica António Victorino d’Almeida. Até porque, na essência e na teoria, o maestro nada tem contra este universo tecnológico. “Em si, é bom, é ótimo, é excelente. Em termos de acesso e de resultados não são aqueles que se desejariam”, repara. Nota uma euforia à volta das redes sociais e um certo fanatismo que não são saudáveis. Às vezes, lá calha, ver uma ou outra coisa na internet. “Quando estava a escrever a minha história da música, já havia redes sociais. Nunca tive razões para confiar naqueles textos, naquelas coisas”, recorda o maestro de 83 anos.

Na última quinta-feira, 29 de fevereiro, estava a tocar em Viena, Áustria, e ontem, sábado, em Valença, no Minho. A 9 de maio, Dia da Europa, mais um concerto na agenda, em Lisboa. Não estar nas redes significa menos trabalho? “Não me parece que tenha qualquer interferência. O número de concertos e de participações não aumentou, nem diminuiu”, constata António Victorino d’Almeida. “Nesse aspeto, não tenho razão de queixa.”

Gonçalo M. Tavares, escritor
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Gonçalo M. Tavares também não. No entanto, não exclui abrir a porta a este mundo, até poderá lá entrar, mas a fazê-lo não será da forma mais comum. “Quero fazer algo no futuro, até em breve, nas redes sociais, mas algo que tenha a ver com conteúdo, com qualquer coisa a nível da criação”, revela, sem pormenores. “Julgo que a internet e as redes sociais podem ser muito importantes a nível criativo e, nesse aspeto, no futuro, penso que pode fazer sentido algo aí”, diz o escritor, de 53 anos, com obra traduzida em mais de 70 países.

Ricardo Araújo Pereira não tem redes sociais e explicou porquê em debates informais. Numa dessas ocasiões, partilhou a sensação das pessoas se comportarem de maneiras diferentes dentro e fora das redes, parece-lhe “uma realidade com regras próprias, em que valem coisas que não valem na vida real”.

Depois, há aquela pergunta do Facebook: Em que é que estás a pensar? “Boa parte do sucesso da minha vida social é ser capaz de omitir aquilo em que estou a pensar. Quanto mais esconder das outras pessoas aquilo em que estou a pensar, melhor eu me dou com elas.”

Há outro aspeto que faz pensar o humorista, além da privacidade, da quantidade de dados fornecidos. É a forma como o que vem nas redes penetra e é usado pela comunicação social. “A maneira como os media tradicionais lidam com as redes sociais é desadequada, parece-me haver uma espécie de tecnofilia, uma admiração acrítica dos media tradicionais pelas redes sociais que é absolutamente injustificada”, defendeu, convidando ao exercício de colocar no Google, entre aspas, “incendeia as redes sociais”. É o vestido, o biquíni, a crónica, a frase. A tecnofilia de que fala. E trabalho? Trabalho não lhe falta.

Agapito esteve quase convencido. “Ter ou não ter redes sociais? Não há um caso que está mais certo do que o outro. É o que é.” E não se sente um ser do outro mundo. “Não me sinto nada estranho, mas sinto sempre a estranheza das outras pessoas por não ter redes sociais.”

António Victorino d’Almeida, maestro
(Foto: Paulo Alexandrino/Global Imagens)

António Vitorino d’Almeida recupera uma história contada por um assistente de Alexander Fleming, médico que inventou a penicilina, que ia lá a casa, amigo dos pais. “Fleming disse ao seu assistente ‘não sei se estamos a descobrir uma coisa boa ou uma coisa má’.” A descoberta era boa, a questão era o que se iria fazer com ela. “Com as redes sociais, passa-se o mesmo”, observa o maestro. A analogia funciona.