A importância de se chamar Caitlyn. E de usarmos o pronome certo

Notícias Magazine

Quando é que hum homem passa a ser mulher? Quando um parecer médico o determina? Quando uma comissão o avalia? Quando um procedimento cirúrgico é concluído? À vontade, podem rir do «procedimento cirúrgico». Também podem responder «nunca». Se não nasceu mulher, nunca é mulher. Podem até acrescentar que, se foi «criado» homem, assim será a vida toda. A vida toda dele. Mesmo que se sinta «ela». Ou, então, passa a ser mulher no dia em que assim o entende. No dia em que o sente. No dia em que o assume. Perante si. E, talvez mais tarde, quando resolver partilhar com o mundo. Seja qual for a resposta, a decisão é dela. Sim, ela. É da vida dela que falamos.

Assim que a famosa capa da Vanity Fair com Caitlyn Jenner foi tornada pública, a 1 de Junho, as reações sucederam-se. Posts no Facebook, tweets, artigos de opinião, perfis escritos ou atualizados rapidamente, a notícia espalhou-se como fogo em seara seca. Naquele dia, em menos de quatro horas, a conta de Caitlyn no Twitter chegou ao milhão de seguidores. Mas a notícia não era propriamente a mudança de sexo – há muito tempo que se sabia que Bruce Jenner estava a levar a cabo um processo de transição. A notícia foi a elegância com que a insuspeita Vanity Fair lhe cedeu uma capa. Com isso, marcou uma posição. Felizmente partilhada por alguns órgãos de comunicação social pelo mundo inteiro. Não escreveram sobre o ex-atleta olímpico, medalha de ouro no decatlo em Montreal em 1976, padrasto das irmãs socialite americanas Kardashian, que resolveu tornar-se mulher. Em vez disso, contaram a história de Caitlyn. E trataram-na como ela merece: por «ela».

Bruce não é «o transgénero mais famoso do mundo». Nem «um transexual». Caitlyn, sim. Caitlyn é a mulher transexual mais famosa do mundo. E isso faz toda a diferença. «O que é surpreendente é muita gente continuar a usar o pronome errado», diz Paulo Corte-Real, vice-presidente da ILGA-Portugal. Nos últimos anos, aquela associação tem sido responsável por sucessivas ações de sensibilização em linguagem identitária junto de formadores da Segurança Social, das forças policiais, ligados à justiça ou à saúde. Mas há ainda muito por fazer. «Já viram aquele gajo que mudou de sexo e agora é uma mulher?» A expressão continuará a ser ouvida durante o tempo que fizer sentido para quem a disser. Mudar o chip para «aquela gaja que mudou de sexo e antes era um homem» custa mais. A menos que um dia a falta de respeito por questões identitárias se torne crime, cada um dirá o que quer. Em surdina, em conversa de café, em comício ou em artigo de opinião num jornal. E, como para muita gente isso de ser «falta de respeito» é tão difícil de entender como o facto de alguém mudar de sexo, temos de dar passos pequenos. Mas firmes.

O exemplo mais flagrante talvez tenha sido o da Wikipedia. A enciclopédia livre online pode não ser o maior baluarte de credibilidade e segurança nas fontes, mas é um bom recurso para tirar dúvidas rápidas. Por isso é tão consultada. Na segunda-feira passada, cerca de uma hora depois de a Vanity Fair disponibilizar a capa, já a página sobre Bruce em inglês tinha sido alterada. Não se tratou apenas de mudar o texto ou acrescentar uma fotografia. Foi o próprio nome da página que mudou, adotando agora o nome dela. E com este belo arranque: «Caitlyn Jenner (nascida William Bruce Jenner, 28 outubro de 1949), conhecida como Bruce Jenner até 2015, é uma personalidade televisiva americana e ex-atleta…» A mudança não ocorreu apenas na vida real. Aconteceu também na Wikipedia em inglês. Querem maior metáfora do que isto representa?

 

[Publicado originalmente na edição de 7de junho de 2015]