Sou obrigado a desmentir Sophia Loren

Notícias Magazine

Da série “famosos a olhar para famoso” não há foto mais célebre. Em abril de 1957, os estúdios Paramount davam uma festa no restaurante Romanoff’s, em Beverly Hills, Los Angeles. Lembro-vos o lugar: ainda no Ano Novo anterior tinham sido lá vistos os reis de Hollywood, juntos ao balcão do bar: Clark Gable, Gary Cooper e Jimmy Stewart. Já para não falar das vezes em que servi a Lauren Bacall e o Humphrey Bogart na mesa que eles tinham sempre reservada junto à parede. Claro que eu também lá estava naquela festa de abril. Mas talvez vocês não o saibam porque cortam-me quase sempre a cabeça na famosa foto, apesar de eu estar no centro dela. Há a tentação de fazer zoom para aquilo que tornou a foto um ícone, os tais “famosos a olhar para famoso”: os olhos da Sophia Loren, de esguelha, para o par – digamos só par – da Jayne Mansfield.

Ambas, decotadas, medem-se na foto. Sophia, de vestido escuro, Jayne, de vestido brilhante claro, estão sentadas à mesa. A americana toda virada para o fotógrafo da revista Life, cabelos platinados e ondulados, como toda ela. O colo de Jayne Mainsfield estava nu (oh, quanto!), não tinha colar, como quem não quer dis­trair com pormenores quando o maior (exactamente 40 polegas, 101,5 cm) é o essencial. À sua direita, a italiana (só 98 cm…) pôs um colar de diamantes grossos, subliminar aceitação da derrota pelos números, como se ela quisesse desviar as atenções para as joias.

Sophia Loren devia estar danada porque aquele era um vasto terreno de luta onde ela não estava habituada a perder. Três anos antes, em 1954, o mundo assistiu a um combate épico que se passa­ra no Festival de Cinema de Berlim. Que havia duelo era notório, a delegação oficial italiana levava Sophia Loren e Gina Lollobrigida, deixando a Itália dilacerada entre la pizzaiola (vendedora de piza), o último papel de Sophia, em O Ouro de Nápoles, e la bersagliera, a caçadora, Lollobrigida em Pão, Amor e Fantasia. O resultado final foi proclamado por uma foto onde Sophia Loren, desta vez sem colar, sorria encantadíssima pelo que mostrava, e Gina Lollobrigida, apesar do tanto que também tinha, sabia que era menos e não sorria. No meio delas, uma atriz americana Ivonne De Carlo, incli­nava-se para aparecer na foto mas era melhor que o não fizesse: “O que é que as nossas têm e De Carlo não tem?”, legendaram os jornais italianos, esquecendo as questiúnculas internas.

Voltando à foto no Romanoff’s, admito que eu fiz um pouco o papel da Yvonne de Carlo, pois estou no centro da foto e apagado. Os leitores podem confirmar porque a foto voltou a ser muito divul­gada esta semana quando Sophia Loren, aos 80 anos, deu uma entrevista pelo lançamento das suas memórias Ontem, Hoje e Amanhã – A Minha Vida. Eu sou o tal, no meio, de pé, atento, mãos caídas e juntas, segurando um pano, de smoking branco e curto, laço negro, o uniforme dos empregados do restaurante mais famo­so de Hollywood. Os jornais diziam que tínhamos todos ar de “Jeeves”, como os americanos chamam aos mordomos pedantes ingleses. Dessa noite apareço ainda em mais três ou quatro fotos. Mas naquela, quase sempre de cabeça cortada.

O que me deixa indignado. E só não fui para os tribunais por­que, se repararem bem, também cortaram a cabeça ao outro homem na foto, à esquerda. É o patrão, o príncipe russo Michael Obsolens­ly-Romanoff, primo do czar, embora meia Hollywod soubesse que ele era um judeu lituano que nem russo falava. O sr. Romanoff dizia: “Ninguém sabe a verdade sobre mim, nem eu.” Eu, lá no fundo e cabeça cortada, se calhar também não sei quem sou. Mas uma coisa garanto: Sophia mente. Ela diz agora nas entrevistas: “Estou a fitar os mamilos dela porque estou com medo que eles saltem para o meu prato. É possível ver o medo na minha cara.” Mentira: no momento da foto, ela, tal como Jayne, não tinham prato, só chávena de café. Como a foto mostra. Mas não preciso dela, eu sei, eu estava lá.

[Publicado originalmente na edição de 9 de novembro de 2014]