Breve manual para encalhados
Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.
Não gosto de santos importados. O que é nacional é bom e se há coisa que não nos falta é muito santo que fez história e que continua a ser consagrado pela tradição popular. De Santo António a São Vicente, passando pela Rainha Santa Isabel, contam-se mais de 100, canonizados e beatificados, quase todos mártires, como mandam os preceitos da fé cristã. Um amigo de infância, que está entre as cinco pessoas mais snobs que conheço, diz que chique não é ter um conde, um marquês ou mesmo um duque a enobrecer a árvore genealógica, o que dá categoria e singularidade é ter um santo.
Pior do que São Valentim, só mesmo as festas de Halloween que têm como única vantagem revelar a fealdade mais visceral do ser humano quando se mascara para a noite das bruxas. Esta noite nada tem a ver com santos, mas é igualmente ridícula, por estar totalmente descontextualizada da realidade nacional. Voltando ao Valentim, aproveitado pela civilização ocidental para festejar o Dia dos Namorados, é hoje o símbolo daquele dia do ano que se tornou difícil para quem não tem e tantas vezes penoso para quem tem. Passo a explicar: eleger uma data específica para festejar o romance é como marcar na agenda dias certos para o cumprimento de atividades lúdicas de teor íntimo, como se fosse um TPC. O cidadão ordeiro e cumpridor já paga impostos e segurança social, já leva os filhos à escola, já é obrigado a dançar com a diretora do seu departamento na festa de Natal da empresa e a ir almoçar ao domingo à casa dos sogros. A vida adulta está atafulhada de prazos e de cedências, não sobra muita margem para o improviso. E depois existe toda a parte gaga envolta no 14 de fevereiro; hotéis e restaurantes aumentam os valores e criam menus e programas para as datas. Floristas munem-se de stocks de rosas encarnadas e não dão conta das entregas à esposa legítima, à amante suspirante ou à ex-amuada. Pelas ruas das cidades vejo rapazes de todas as idades empunhando uma flor qual espada que ninguém lhes ensinou a manejar e raparigas com as ditas enfiadas nos sacos como se tivessem ido buscar uma baguete à padaria da esquina. E se dois amigos se esquecem da data e vão jantar fora, vêm-se rodeados de casais quase sempre de trombas, contrariados pela imposição do festejo.
Para sobreviver a este dia longo, aqui ficam algumas recomendações: não jantar fora nem marcar um fim de semana a dois num hotel no campo, não mandar gifs com o Woodstock a dar abraços ao Snoopy ao/à ex e, sobretudo, não lamentar a condição avulsa, caso não tenha um par com quem possa contar quando fica doente e precisa que alguém vá à farmácia e lhe faça uma canja.
Antes só do que mal acompanhado, ou desacompanhado por alguém que vai passar metade do tempo agarrado ao telemóvel durante o jantar. Deus é mais, não se contente com menos. O amor é tudo ou nada, se não for tudo, não serve para nada.