É o único surfista biamputado do Mundo, foi campeão mundial de triatlo, percorreu 400 quilómetros de canoa por mar. Já fez de (quase) tudo. Pauê Aagaard não deixou que o infortúnio lhe moldasse a vida. Sonha, sonha muito. E oferece o seu exemplo para que outros possam perceber que nada é impossível.
Oito de junho do ano 2000, cidade brasileira de São Vicente. São oito e meia da noite e um jovem de 18 anos segue tranquilo por uma linha desativada de comboio quando, de repente, é brutalmente colhido por uma locomotiva que não era suposto por ali circular. É o princípio de uma nova vida para Pauê Aagaard, que perde as duas pernas, substituídas daí em diante por próteses que lhe darão mobilidade independente. Torna-se tão grande que mais tarde conquista o título mundial de triatlo adaptado e é considerado o único surfista biamputado do Planeta.
São Vicente é cidade de sol, muito sol. E de mar, um mar imenso que quase parece infinito. Fica a poucos quilómetros de Santos, no estado brasileiro de São Paulo, onde nasceu Paulo Eduardo Chieffi Aagaard, filho de mãe com sangue italiano e de pai de origens italianas que se mudaram para São Vicente já o pequeno Paulo estava habituado a que o chamassem pela alcunha que lhe ficou para vida: Pauê. Entre o colégio e os estudos, o desporto ocupava-lhe os dias. Por prazer, puro prazer. Experimentou quase tudo. Jogou futebol de salão, testou capoeira, andou pelo karaté, aventurou-se pelo ténis de mesa, mas foi no mar, o tal mar infinito de São Vicente, que o surf lhe deu prazer tão especial que dele nunca abdicou. Vê-lo feliz era vê-lo de prancha debaixo do braço a caminho da praia do Itararé. “No desporto aprendem-se valores essenciais que se levam vida fora. Isso mesmo foi-me incutido pelos meus pais”, conta à “Notícias Magazine”.
São Vicente só teve um dia de trevas na vida de Pauê Aagaard, aquele dia em que ia ter com um amigo, como tantas vezes fazia, e seguia tranquilo ao longo de um troço ferroviário moribundo. Foi enganado, porque, afinal, por ali ainda circulavam raramente comboios, quase silenciosos e mal iluminados. “Ia a caminho do ginásio para nadar. Não me apercebi de uma locomotiva de luzes apagadas e com velocidade acima do normal. Era um jovem cheio de vida, com muita energia e tudo mudou de repente”, recorda.
Foi essa locomotiva que lhe alterou a vida para sempre. Não a viu, sequer a ouviu, apenas lhe sentiu a força bruta quando percebeu o impacto dela no seu corpo de adolescente. Resvalou para debaixo daquele monstro de rodas pesadas e implacáveis, sentiu-se esmagado por um monte de ferro gigante, sem nunca perder a consciência. Tanto assim que, quando pressentiu que o comboio abrandara, tentou sair debaixo dele, sem saber que metade de si ali ficara. “Tive o tempo todo desperto. Pensei que era um pesadelo, que aquilo não estava a acontecer. Uma espécie de transe que misturava realidade com fantasia”, descreve.
Arrastou-se, conseguiu libertar-se, incrivelmente não sentiu dor “tamanha a adrenalina do momento”. Também não percebeu imediatamente que as suas pernas haviam sido devoradas pelo trote traiçoeiro do rodado de uma máquina que não era suposto ali passar, qual hora maldita. “A minha sorte foi que o corte não atingiu as artérias, caso contrário teria morrido.”
O novo Pauê
Naquele 8 de junho de 2000 nascia um outro Pauê. Veio o hospital e com ele 52 dias de internamento em que colocou tudo em causa e o seu contrário. Quis continuar em frente, também pensou desistir. Tanta vida pela frente e tanto infortúnio, equilíbrio impróprio de encontrar para quem tinha sonhos e não os queria perder. Venceram a esperança e o otimismo, prevaleceram as palavras de ânimo, conforto e esperança dos pais, dos amigos, dos médicos.
Não imaginava o que viria pela frente, foi uma descoberta constante. Apoiei-me muito em Deus e na família”, lembra. “Até que um dia, ainda no hospital, perguntei à minha mãe se poderia continuar a surfar. A resposta dela foi o clique que me fez cair a ficha”, aponta. “Meu filho, tu vais atrair as pessoas pela energia que emanares”, ouviu como mote de inspiração.
De regresso a casa, Pauê adaptou-se às próteses que lhe iriam servir de apoio pela vida fora. E procurou novamente o mar. Começou por nadar em piscina para adaptar o corpo às dificuldades, não tardou em voltar a pegar na prancha e superar o desafio de voltar a fazer o que tanto gostava antes do acidente. Simultaneamente, foi convidado a integrar a equipa de triatlo paralímpico – desporto que combina 750 metros de natação, seguidos de 20 quilómetros de ciclismo e outros cinco quilómetros de corrida – da Universidade de Santos. “Dia após dia fui evoluindo e aumentando a capacidade de superação. Ver o exemplo dos meus colegas, que eu considerava como ídolos, inspirou-me a ser melhor, a querer mais, a ir mais além.”
Até que surgiu a oportunidade de participar nos Campeonatos do Mundo da especialidade. Um objetivo que parecia impossível cumprir. Já com resultados de relevo nas provas realizadas no Brasil e a nível continental, Pauê participou no popular programa televisivo “Domingão do Faustão”, da rede Globo, e contou publicamente que a sua ida ao México para competir estava comprometida por falta de financiamento. No dia seguinte, recebeu a boa nova. “O meu caso suscitou uma onda de solidariedade que angariou o valor da inscrição nos campeonatos, 540 dólares”, rebobina.
Voou para o México, onde dias antes da competição deu uma conferência de imprensa que lhe granjeou ainda mais popularidade e motivação. Mesmo sem estar entre o rol de favoritos, conquistou a medalha de ouro. “Fiz a prova de natação num tempo muito inferior ao meu melhor da altura. O ciclismo também correu bem e na corrida, a parte em que tinha mais dificuldades, superei as dores imensas que senti e deixei-me voar até à meta. Quando a cruzei, passou um filme na minha cabeça e disse-me que tudo é possível”, emociona-se.
Empenhado em não deixar para trás objetivos de vida, licenciou-se em Fisioterapia e continuou a praticar desporto, muito desporto. “Sobretudo surf, que ainda hoje faço com muita regularidade, é a minha filosofia”, assinala.
Documentário, livro e palestras
A história de Pauê Aagaard podia ter dado um filme. Não deu, mas transformou-se em documentário, “Pauê – o passo de um vencedor”, estreado em 2013. E também foi tema de livro, “Caminhando com as próprias pernas”, escrito pelo próprio. Ambos tiveram enorme repercussão no Brasil, dando a conhecer a sua história, mostrando que o infortúnio físico não é sinal de condenação eterna, emocionando os que lhe elogiaram a perseverança, inspirando quem, como ele, sofreu lesões graves e queria seguir vida mas não sabia como, nem para quê.
Pauê Aagaard foi, igualmente, tema de canção, interpretada pelo artista Fildzz, seu amigo e admirador.
Depois do título mundial de triatlo, Pauê impôs a si próprio outra meta ambiciosa. Quis participar no concurso Iron Man, que pode chegar aos oito quilómetros de natação, 180 de ciclismo e 42 de corrida. Foi traído por uma lesão grave. “Um estiramento no músculo posterior da coxa esquerda, que se fosse agravado poderia levar à amputação do que resta dessa perna”, lamenta. Mesmo assim, não olhou para trás e gravou novo desafio na mente, este superado com distinção. Durante dez dias, Pauê percorreu de canoa os 400 quilómetros de mar que ligam as cidades de Parati, no estado do Rio de Janeiro, à sua Santos. “Tentei superar-me a mim mesmo novamente, uma prova de resistência em que quis demonstrar-me que era capaz”, realça. E demonstrou.
Pelo meio, ganhou o prémio de atleta do ano “Faz a Diferença”, atribuído pelo prestigiado jornal “O Globo”, na categoria de Inclusão Social, e foi dando cada vez mais palestras, pelo Brasil e pelo Mundo. Para mostrar que tudo é possível mesmo quando as limitações são bastantes e a vida nos dá pontapés que nos atiram ao chão com violência. “Inspirar os outros é consequência da minha atitude, gosto de fazer ver que há outros caminhos. Se eu consegui, outros também vão conseguir. No fundo, é levar uma palavra de esperança que possa servir de inspiração para dias melhores”, frisa.
Uma das próximas palestras será em Portugal, a 7 junho, na DDC Samsys 2024, a 7 de junho no Multiusos de Gondomar. Ficará o mês quase todo por cá. “Vou querer surfar em Peniche e na Ericeira”, garante. As ondas esperam-no. Porque para Pauê Aagaard, o mar é casa e o sonho companheiro permanente.