Margarida Rebelo Pinto

Proezas de pastelaria


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Eis que de repente a velha Lusitânia despertou em profundo júbilo por sermos os melhores do Mundo no pastel. Como gostamos de tudo a dobrar, somos campeões não em apenas com um, mas com dois, o de Belém e o de nata. Que sempre fomos mestres em doçaria é um facto histórico centenário que ninguém questiona. Para alguma coisa terão servido incontáveis gerações de senhoras e donzelas encarceradas em conventos, dando bom uso à abundância dos ovos retirados a galinhas igualmente encarceradas em capoeiras. Também eu, que nem sequer sou doceira, fiquei encantada com tal feito e gostei de ver que a bola de Berlim, embora num apagado vigésimo sexto lugar, bateu o pretensioso brioche e o enjoativo éclair. Quem resiste a esse portento da doçaria popular, ainda mais saboroso depois de um mergulho em qualquer praia da nossa costa, seja ela azul, verde ou de prata? Por alguma razão os franceses vêm concretizando de forma paulatina, porém esmagadora, a sua quarta invasão, trocando a Cidade Luz por Lisboa Menina e Moça e a Côte d’Azur pela Comporta, contribuindo para a escalada de preços no imobiliário, abrindo hotéis e restaurantes pela orla costeira e empurrando os lisboetas de gema para a periferia.

Somos os reis do pastel de nata numa República pouco orgulhosa que gerou tarde e a más horas uma democracia frágil, minada de práticas socialistas de uma classe política que se assume como esquerda caviar porque já não tem como esconder as suas ambições pessoais, tanto no Governo, como nas autarquias. Uma democracia enviesada na qual existe liberdade de expressão, mas com dois pesos e duas medidas, porque a Esquerda pode fazer e dizer tudo, já a Direita é atacada assim que levanta a cabeça, tanto na política como na cultura. Somos um povo que se deixa maltratar pelos seus governantes e que precisa de anos, ou décadas de abuso sistemático, para reagir. Que o digam os professores, as forças de segurança, os trabalhadores do setor público e do privado, enquanto o Governo anda a brincar aos gestores incapazes em dossiês tão sérios como o da TAP. E por falar em aviões, assim que aterramos no aeroporto de Lisboa (enquanto esperamos há décadas por um novo aeroporto) somos de imediato invadidos pela sensação de nadar num pastel de nata: tudo é lento e difícil, sobretudo para um estrangeiro que queira pedir residência, porque o SEF não funcionou durante mais de dois anos.

Por cá, o modus operandi para quem trabalha é um caminho das pedras; os trabalhadores independentes mandam emails que caem em saco roto, os assalariados não têm direito a aumentos decentes, enquanto os quadros superiores disso beneficiam, quando a inflação atinge mais aqueles que menos ganham. O povo aguenta, porque ainda nos corre nas veias aquele conformismo atávico, uma passividade endémica que nos torna mansos, pensando que estamos apenas a ser brandos. Pagamos impostos altos para termos um ensino público agonizante, um sistema de saúde em falência de órgãos e uma reforma que ninguém sabe se vai receber. E quanto mais o Estado tira, menos sobra para o investimento privado. Ganhámos nos pastéis porque o nosso lugar, enquanto cidadãos de Portugal e da Europa, é na cozinha, enquanto os impostos aumentam e alguém vai metendo a mão na massa. Valham-nos as proezas de pastelaria, porque a mais não temos direito.