Prevenção é a chave no combate ao cancro do intestino

Ainda que as estatísticas sejam, de forma geral, positivas, há ainda estigma por desbravar

Março é o mês Europeu da Luta Contra o Cancro do Intestino. Especialistas falam de novos tratamentos e de recentes diretrizes no rastreio, mas salientam que aumento da deteção e tratamento de lesões pré-malignas é o caminho ideal.

Perto de 80% dos pólipos encontrados no intestino são lesões removíveis. É nestes números que, segundo Leopoldo Matos, a sociedade tem de se focar para consciencializar a população para a possibilidade de, mais do que diagnosticar precocemente ou tratar, prevenir o cancro do intestino. O gastroenterologista na equipa dos Lusíadas acredita que “a remoção das lesões benignas potencialmente malignas é a atitude mais correta a adotar”. “Esse é o futuro do combate ao cancro do intestino: que ele nem chegue a aparecer.” Para isso, desenvolve, é necessário quebrar estigmas e investir em rastreios eficazes e menos invasivos, mas já lá iremos.

Voltemos às lesões pré-malignas, vulgarmente conhecidas por pólipos, que são removíveis. Estas lesões “percorrem as mais variadas etapas antes de se transformarem num tumor avançado”, explica o médico e professor Mário Dinis Ribeiro. Para o tratamento destes referidos pólipos, que no espaço de dez a 15 anos se poderão transformar em células cancerígenas, “basta uma colonoscopia, que os permite retirar com cura para os doentes”. Este é o primeiro tratamento a oferecer assim que são detetadas estas lesões, avança o também diretor do departamento de Medicina do Instituto Português de Oncologia (IPO). Além de um método de diagnóstico, a colonoscopia funciona simultaneamente como um método de tratamento. Ou seja, ao fazer este exame médico, é possível detetar estes pólipos e, no mesmo momento, retirá-los. Tudo numa só intervenção, que é pouco invasiva e apresenta um baixo risco, como veremos de seguida.

Ricardo Veloso, gastroenterologista associado à Liga Portuguesa Contra o Cancro, corrobora a importância da colonoscopia, já que “é o método mais sensível e eficaz”. “Num Mundo ideal, o rastreio a esta doença devia ser feito a partir dos 45 anos por colonoscopia.” Não é o que acontece atualmente e, não havendo a possibilidade num futuro próximo de instalar este exame médico de forma generalizada e gratuita a toda a população acima da referida idade, Ricardo Veloso admite que, “num Mundo não ideal, o rastreio de sangue oculto nas fezes seria a abordagem mais sensata para começar aos 45 anos”. Este é exatamente o rastreio que está atualmente em vigor em Portugal, porém, acima dos 50 anos, e apenas em determinadas zonas do país de forma extensiva. Ainda que a meta europeia continue a apontar para que este rastreio seja feito acima dos 50 anos, as diretrizes mais recentes que chegam de países como Canadá, Estados Unidos, entre outros, com base em estudos científicos, salientam a importância de adiantar este exame para os 45 anos. “A meta dos 50 anos no rastreio foi pensada para o diagnóstico precoce, mas neste momento devemos alterar a narrativa para nos focarmos antes na prevenção”, remata Ricardo Veloso.

Projetos de investigação europeus

No entanto, destaca o gastroenterologista da Liga, o rastreio de sangue oculto nas fezes, que consiste na análise de uma amostra de fezes, apresenta limitações no diagnóstico, uma vez que os pólipos, quando pequenos, podem não sangrar. “Quando sangrarem e forem detetados neste rastreio podem já estar numa fase avançada e até já ter evoluído para malignos.”

A trabalhar no aumento da eficácia destes rastreios está Mário Dinis Ribeiro e a sua equipa, atualmente integrados em três projetos europeus que versam a investigação científica na área da oncologia médica. “Um dos projetos visa otimizar as formas de rastreio não invasivo do cancro do intestino, em particular a análise do sangue oculto nas fezes.” O objetivo é que este método consiga resultados mais fiáveis. “Algumas publicações recentes focam que a população mais jovem está a aderir de forma voluntária a métodos não invasivos” e, por isso, “é aí que queremos melhorar”, diz Mário Dinis Ribeiro. Para futuro, estes trabalhos na área de investigação “esperam, nos próximos quatro anos, melhorar, por um lado, a perceção das pessoas para a justificação dos rastreios e, por outro, perceber em que situações é importante fazer exames complementares a órgãos do mesmo sistema, como é o caso do estômago, por exemplo”.

Na área dos novos métodos de rastreio, o gastroenterologista Leopoldo Matos afirma não haver “grandes anúncios”, mas tem havido, conta, “uma tentativa de encontrar métodos não invasivos que se baseiam em estudos genéticos”. Esse, assinala o profissional, será o futuro. Neste momento, “ainda são muito incipientes em termos de segurança e execução, o que leva a dificultar a execução em massa”.

Ainda na área da pesquisa científica e de novidades que poderão chegar nos próximos anos relativas a este problema oncológico, que afeta sobretudo o intestino grosso e o reto, “há cada vez mais estudos genéticos e celulares que procuram entender qual é o erro que acontece quando uma célula se transforma em produtora de células malignas”. “É um trabalho em andamento a nível internacional para que se consiga, um dia, a tão desejada cura”, enfatiza Leopoldo Matos.

Enquanto esse ideal não é alcançado, têm surgido novas terapêuticas, que, em resumo, procuram ser mais eficazes com menores efeitos secundários indesejados. O gastroenterologista dos Lusíadas explica que os tratamentos têm passado, por exemplo, “da tradicional quimioterapia, com citostáticos (fármacos que se opõem ao crescimento, desenvolvimento e multiplicação celular), para terapêuticas biológicas e imunológicas”. Os benefícios encontram-se na forma de atuação. Se, por um lado, os citostáticos destroem células “com grande força de reprodução”, o que, na maior parte das vezes, implica eliminar células tumorais, mas também células “normais, saudáveis” e importantes para a pessoa; por outro, “estes sistemas biológicos ou imunológicos atuam por outros mecanismos, mais primários do ponto de vista dos circuitos do organismo na captura de células anormais, e não destroem tantas das outras células ‘boas'”. São, por isso, tratamentos mais bem tolerados pelo corpo humano que recebe o tratamento.

Os números e as causas

Voltemos ao caso português. Para o médico e investigador Mário Dinis Ribeiro, “Portugal está melhor em termos de rastreios do que há cinco anos”. No norte do país, onde o rastreio de sangue oculto nas fezes foi implementado de forma massiva, “já chamamos pelo menos uma vez toda a gente, ainda que só metade tenha aderido ao rastreio”. “Isto terá um impacto em cinco ou dez anos. Primeiro, vamos assistir a um aumento dos casos, por força de um maior número de rastreios realizados, mas depois haverá uma redução do número de casos e, por consequência de diagnósticos precoces, da mortalidade.”

Ricardo Veloso acredita que a consciencialização para o cancro do intestino é “importantíssima” por este ser “um verdadeiro problema de saúde pública”. “Em 2020, o último ano em que conseguimos ter dados fiáveis, o cancro colorretal foi o mais diagnosticado e o segundo mais letal em Portugal.” Segundo dados do Serviço Nacional de Saúde (SNS), são diagnosticados cerca de dez mil casos por ano.

Os rastreios implementados em 2009 começam a apresentar o seu efeito nos números, e maior comprovação virá nos próximos anos. O médico Ricardo Veloso realça a estabilização ou declínio da incidência da doença oncológica no intestino entre os 50 e os 75 anos. Entre os 20 e os 40 anos, por outro lado, duplicou. “Ainda há muito mais pessoas doentes acima dos 50 anos, mas em percentagem relativa, aumentou a incidência em idades precoces.”

As razões para estes números, que não são exclusivos de Portugal, são também um estudo em andamento. “Pensa-se que pode ter a ver com estilos de vida, com a composição da macrobiótica intestinal, com questões genéticas ou até com a obesidade, que tem sido um fator cada vez mais presente na sociedade.” Em suma, Ricardo Veloso, da Liga Portuguesa Contra o Cancro, sublinha que poderá ser um acumular de diversos fatores. No entanto, alerta o especialista, é certo que comer frutas e vegetais frescos e ter uma dieta mediterrânica, com reduzida ingestão de carnes vermelhas, são atitudes preventivas.

Ainda que as estatísticas sejam, de forma geral, positivas, há ainda estigma por desbravar. “Há estudos que mostram que as pessoas mais afetadas, homens solteiros, são quem menos faz exames.” O receio da população parte, sobretudo, ainda, do desconhecimento e relutância em torno da colonoscopia, indica Ricardo Veloso. “Com a anestesia, que é apenas uma sedação, com reduzidos riscos, o doente não sente qualquer tipo de dor.” Além disso, continua, “”perfuração intestinal, um dos medos relacionados com este método, é um fenómeno extremamente raro, que acontece uma vez em cada dez mil exames”. Devido a desconhecimento da população sobre o método inicial ocorrer apenas por recolha de fezes, a adesão é baixa, o que coloca em causa a eficácia do rastreio através de análise de sangue oculto, “já que este método é eficaz apenas se for feito a um nível regular”.

Ainda que o estigma, em certa medida, se perpetue, Mário Dinis Ribeiro considera que este tem diminuído, sobretudo devido ao trabalho “das mais variadas sociedades científicas e dos jornalistas”. “Torna-se cada vez menos frequente que um doente não saiba como funciona o rastreio e a importância do exame por colonoscopia.” Ainda que se mostre otimista, o professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto sublinha duas áreas em que há trabalho a fazer num futuro próximo: “Em primeiro, conseguir a compreensão massiva de que isto pode atingir qualquer pessoa e que, até um estádio avançado, não dá qualquer sintoma; e a segunda, alcançar a organização do sistema para um método de rastreio, seja ele o mais eficaz de todos ou não, chegar a todos. Mais do que eficácia total, é importante ter cobertura total da população”.