Valter Hugo Mãe

Mudar tudo


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Sempre tive alguma dificuldade em recusar os convites que me fazem. Prefiro oferecer a alegria do que dissipar as vontades e é certo que quase todas as pessoas insistem perante aquilo que querem muito. Eu, se pudesse, oferecia muito de tudo quanto as pessoas querem e precisam. Se fosse no lugar de Deus, inventaria apenas abundância, para que todas as pessoas rejubilassem de satisfação. Mas não é possível.

Nos últimos anos, claramente pelo encanto de ir ver coisas novas mais de perto, meti-me em afazeres diferentes, misturados com os de costume, e subitamente outros amigos e outras formas de organizar os dias se foram definindo. Contudo, também muita outra pressa apareceu, com muita outra pressão, numa constante corrida a um incêndio que nunca se extingue, muito ao contrário, mais se levanta.

Quem verdadeiramente me conhece ou quer ouvir, sabe perfeitamente como declaro que o traço mais fundamental do meu paraíso é o sossego. É algo com que sonho desde que nasci. Essa existência livre do sobressalto e do medo, livre da subjugação, da exploração, livre do quanto não temos vontade de fazer. Para a escrita dos meus livros, é-me imperioso chegar a uma clareira de liberdade. Um espaço de disponibilidade mental que retire de cima de mim todas as pessoas que não param de perguntar, de pedir, de avisar, de me obrigar a prestar atenção a algo quando tudo indica que o meu trabalho vive de focar naquilo que eu mesmo tenho de escolher.

Não sei o que foi que mudou tudo. Os amigos são bastante como as namoradas. Ao fim de uns anos, nem que mesmo muitos anos, caducam um pouco e há que seguir em frente. Não tem de ser dramático. É só uma constatação do cansaço, do desinteresse paulatino. Eu julgo que caduquei e caducaram quase todos os meus amigos subitamente. Fiquei numa espécie de condição solteira à disposição de ser levado. É exactamente como ficar disponível para outros amores. E não é feio, não é triste. É sem mapa e entusiasmante.

Fazer amigos, contudo, requer tempo, um certo investimento que prove à outra pessoa o nosso empenho, o nosso interesse e cuidado. Como fazer isso, pois, quando a vida já é toda adulta e não temos as férias grandes de outrora, não andamos com aulas só de manhã e tardes inteiras à mercê dos vícios? O esforço de fazer amigos pode tornar-se um ofício em cima dos ofícios do costume. Um redobrar de trabalhos que tem limites.

Estou, pois, no limite. Aquele instante em que algumas amizades parecem um patronato, em que tudo quanto me trazem é encomendas e encargos. Com isso, escrever livros, que é o problema que mais sonho abraçar de entre todos os problemas do Mundo, é adiado para uma eventualidade de sossego que, por mais que faça cálculos, não tenho como prever. Sinto que tenho de voltar a mudar tudo. Por infelicidade, o que me parece é a contingente retoma das rédeas da vida e mudar tudo, outra vez.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)