Valter Hugo Mãe

Milan Kundera


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Kundera representa o puro clássico para a minha geração. Para quem começa a ler nos anos de 1980, o escritor de Brno acontece como uma inevitabilidade absoluta. Era completamente impossível gostar de livros sem considerar “A insustentável leveza do ser”, um texto que subitamente se transforma num código viral entre as pessoas, uma meditação pela qual o mundo inteiro parece ter de passar.

Não havia ninguém letrado que pudesse ignorar o jeito de Kundera, essa elegância com que duvidava dos amores, a crítica feroz ao comunismo, a ligeiramente filosofante forma de esperar por consequências quando, na verdade, a trama dos seus livros era desimportante. Ler os seus livros era escutar uma certa conversa consigo mesmo, e criava a impressão de se escutar um homem que tanto queria confiar numa mulher quanto claudicava pela beleza e inteligência de todas as outras. Era o que sempre debatíamos entre os amigos leitores, que o seu narrador tinha tanto de eloquente na hora de definir o amor quanto tinha de falho na hora de o cumprir. Era uma espécie de narrador no divã a justificar-se, com certa lata, de ser infiel. Começava por não se ser fiel a si mesmo.

Creio que Kundera influi muito na literatura dos anos de 1980, porque acabámos por encontrar outros sucessos que refazem o seu jeito reticente mas poliédrico, a coisa de mudar de voz, pensar pelo homem e pela mulher, narrar pelas mais diversas personagens e, sempre, revelar uma angustiada inconsequência de todas as investidas. Uma quase imprestabilidade da condição dos seres. Quando lemos “Um amor feliz”, de Mourão-Ferreira, encontrámos Kundera um pouco à portuguesa. Essa mesma figura perdida no amor em toda a parte, muitos amores ou, mais bem, muito desejo.

Talvez já viéssemos a definir este tipo de narrador que sucumbe ao desejo com a leitura de Duras, que passava pelas mãos dos leitores portugueses, à época, com força sagrada. E Duras já era toda sem atenção à trama, importava-lhe o corpo. Tudo parecia corpo, a sua exposição e uso, o sangue a ferver, o modo como o beijo ou o sexo aconteciam enquanto sismos. Para nós, miúdos a começar a ler, os livros pareciam dizer-nos que o futuro haveria de esboroar os enredos e deixar vir ao de cima sobretudo o irrepetível da meditação, permitindo aos leitores frequentar mais o abalo emotivo de alguém do que a trivial contingência do seu quotidiano. Parecia o fim das histórias e o estabelecimento do império do pensamento solto pela aprendizagem errática da vida.

Morreu Milan Kundera, um dos autores para quem mais a multidão pediu o Nobel. A alegria dos leitores, contudo, foi deixando de encontrar apoio na grande crítica. Kundera, importante, parece ter sido sobretudo mudador. Mais do que dominar a mudança, ela provocou-a. O futuro foi de outros. Mas o passado, em parte, será sempre brilhantemente seu.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)