Valter Hugo Mãe

Miami


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O gigantismo das avenidas, a dimensão dos edifícios, a lonjura que impõem, parece esperar que sejamos cinco vezes maiores para abrir um passo largo adequado a fazer vida em Miami. Tenho a impressão de que tentamos estar à altura de um lugar que foi criado para outro tipo de habitante. Os carros justificam os tamanhos, a dispersão por uma terra tão extensa que tudo se torna a perder de vista e a cidade é o cúmulo de várias cidades distintas, em tempos completamente diferentes, tão sofisticada quanto nostálgica.

As pessoas de Miami são esmagadoramente latinas. Formam uma Babel de entendimento que veio, ao abrigo dos Estados Unidos da América, inventar uma super-identidade onde todos pertencem e são estrangeiros ao mesmo tempo. Claro que a América se define muito por isso, mas aqui é peculiar o quanto a língua de Espanha é a corrente e os sotaques convivem como temperos orgulhosos com que cada um levanta sua voz. Cada pessoa carrega em si mesma outro país que não este, e este país, tão concreto e brilhante, é também sobretudo o que sonham dele. Os Estados Unidos, em certa medida, também acontecem à medida do que cada um sonha, como um lugar onde esse elemento se atreve a fundamentalmente participar.

Tenho a ideia de que aqui não é para desistir. As oportunidades estão em toda a parte e todos estão predispostos a embarcar numa ideia que pareça admirável. Ao contrário de outras culturas, aqui é o império do ímpeto. E toda a gente admira, junta-se e celebra aqueles que tentam, e mais ainda aqueles que conseguem. Nos EUA, talvez aquilo que mais me impressiona e fascina, é exactamente a disposição para juntar esforços e dar certo.

Quem chega e busca as pessoas vai surpreender-se com o vazio que isto parece. E, a mim, chama a atenção alguma quietude que se põe debaixo de um sol sempre quente que manda seguir para as praias. Nas praias aparece a multidão. Coisa que não vejo em mais lugar nenhum. Mesmo entre os prédios mais altos, as zonas mais populadas, tudo persiste calmo. A escala defende a cidade de qualquer confusão. Há lugar para todos. Não se torna necessária a disputa por um nico de esplanada.

Gosto da atenção nos serviços. Claro que a intenção de nos venderem algo é que justifica, mas gosto que nos escutem e procurem com rigor entregar o que é pedido. É glorioso particularmente com a comida. Minhas alergias e intolerâncias agradecem. Ninguém despreza o que se pede. A hipótese de criarem algum problema de saúde a um cliente seria um desastre para a visão de qualidade e sucesso que buscam. Assim, a recomendação que se faça é levada à cozinha e monitorizada aturadamente para que eu receba meu prato exactamente como pedi. Se isso é bom? É perfeito. Muito melhor do que a insolência dominante no nosso Portugal, onde qualquer variação necessária na receita supõe uma súplica com cunhas de santos pelo meio, e ainda assim é mais certo não ser atendida.

Miami é, e não é, aquilo que esperava. É de gente sensual, com suas praias apelando ao corpo, mas é também onde se encontra a Books & Books, a livraria que vende os livros de Patti Smith autografados e nos faz sentir que estamos bem perto do que importa.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)