Luís Cruz: “A IA não terá emoções. Pelo menos como as conhecemos”

Não há dúvidas de que a inteligência artificial (IA) irá causar uma mudança disruptiva na atividade humana. Luís Cruz, professor na Delft University of Technology, nos Países Baixos, tem investigado o impacto ambiental do consumo de energia associado à tecnologia. Prevê consequências gigantescas no emprego e garante que a IA não é capaz de gerar emoções. Pelo menos da forma como as conhecemos.

Ninguém sabe. Esta é uma expressão habitual quando questionamos especialistas sobre o impacto que a inteligência artificial (IA) pode vir a ter nos próximos tempos, da economia à expressão artística. Estamos ainda longe de obter uma resposta concreta?
É indiscutível que a IA irá ter um impacto significativo na vida das pessoas, a vários níveis. Esse impacto é tão abrangente que ainda não conseguimos responder a essa pergunta quando pensamos na tecnologia IA que temos disponível e o seu impacto nos dias de hoje – muito mais difícil é responder ao impacto que ela terá amanhã. No entanto, é possível prever que a atividade humana irá ter uma mudança disruptiva a todos os níveis e temos de nos preparar para lidar com isso.

Há quem tema pela sobrevivência da Humanidade e quem entenda que esta revolução tecnológica tem de ser encarada com a mesma importância de uma guerra nuclear ou de uma pandemia. Estas visões são alarmistas ou fazem sentido?
A IA tem potencial para tornar a sociedade melhor e também traz desafios que devem ser acompanhados. Como qualquer tecnologia disruptiva, a IA desafia o status quo e, de forma muito rápida, a sociedade tem que se preparar para garantir que é usada de forma benéfica. Por exemplo, se pensarmos num Mundo em que a Internet acabou de ser inventada, as mesmas previsões alarmistas poderiam ser feitas. Isto não quer dizer que não se deva estar atento e que estas questões não devam ser discutidas. Temos o exemplo concreto de um problema a ser abordado: as emissões de carbono geradas durante o desenvolvimento e a utilização da IA. Só numa iteração do seu desenvolvimento, o ChatGPT emite cerca de 550 toneladas de CO2eq, o equivalente a mil carros utilitários a percorrerem mil quilómetros. Isto na versão gratuita, 3.5. Os primeiros números que temos da versão mais recente indicam que o impacto será 40 vezes maior. Com outra ressalva, estamos a falar das emissões de treinar o modelo uma única vez, sem contar com todo o pré-processamento de dados e experimentação para convergir para a última arquitetura do modelo, e sem contar com as emissões geradas na utilização desse mesmo modelo. Enquanto devemos abraçar esta tecnologia e todo o seu potencial benéfico, devemos também estudar estas preocupações e garantir que o avanço tecnológico possa ser feito de forma sustentável.

As implicações legais, éticas e sociais da tecnologia estão a ter a discussão que merecem entre os reguladores?
Há bastante trabalho a ser desenvolvido neste campo. Entre os reguladores, a Europa está na vanguarda, para o bem e para o mal. Ou seja, ainda não estamos num ponto em que a Europa tenha grande competitividade relativamente a outras potências económicas. Por exemplo, não temos um modelo de IA generativa para linguagem natural para línguas germânicas. No entanto, já avançamos no sentido de garantir um grande escrutínio junto das empresas ou organizações que desenvolvam este tipo de tecnologias. Mais uma vez, acredito que este é um esforço coletivo que está a ser feito aos vários níveis da sociedade.

O Parlamento Europeu orgulha-se de ter concluído o primeiro regulamento do Mundo que coloca estes sistemas sob a supervisão humana. Não tendo sido capaz de regulamentar redes sociais ou fazer um combate eficaz à desinformação, os governos europeus estão preparados para garantir o cumprimento da legislação que vier a entrar em vigor?
Governos e empresas devem preparar-se para a nova legislação e, acima de tudo, devem garantir que os principais entraves à sua execução tenham sido discutidos com os vários governos, empresas e outros membros da sociedade.

A legislação devia ter ido mais longe para proteger os consumidores?
Penso que a legislação deverá acompanhar a evolução da tecnologia nos próximos anos. Uma legislação demasiado exigente poderia levar a uma desaceleração da inovação, o que podia ser nefasto para a Europa. Ao mesmo tempo, é reconhecido que algo deve ser feito e a Europa é grande o suficiente para fazer esta exigência.

Como se garante que estes sistemas são seguros, transparentes, rastreáveis e não discriminatórios se a maior parte dos investimentos e desenvolvimentos estão nos EUA e na China?
Garante-se da mesma forma que bens produzidos fora, quando entram na Europa, têm de cumprir uma série de normas. O facto de a maior parte dos investimentos e desenvolvimentos serem feitos fora da Europa é um problema do ponto de vista económico, cientifico, académico, etc., mas não neste foco em concreto.

Segundo um relatório do Fundo Monetário Internacional, de janeiro, a IA irá impactar cerca de 40% dos trabalhadores ou 60% se tivermos em conta apenas as economias desenvolvidas. Qual será o verdadeiro impacto da IA no emprego?
Prevê-se um impacto gigantesco no emprego. Inclusive nas atuais carreiras de programadores de aplicações IA. Mas, tal como em outras revoluções, vão surgir novos serviços e novos empregos. Não há forma de fazer uma previsão realista. Há apenas uma garantia: vai acontecer.

E no ambiente? Será a IA que vai minimizar o fracasso dos sucessivos acordos e tratados internacionais?
No ambiente, a questão tem dois lados que devem ser analisados com cuidado. Há de facto um potencial muito grande para usar IA para gerir recursos de forma mais eficiente. Já há grandes avanços científicos nas áreas da energia, agricultura, reciclagem. No entanto, a IA por si só não vai solucionar o problema. Existe um fenómeno muito falado conhecido por “rebound effect” (ou “jevons paradox”) – à medida que um determinado recurso é mais eficiente, o consumo aumenta e o gasto desse mesmo mantém-se igual. Isto foi o que aconteceu, por exemplo, no setor do transporte e mobilidade. Um outro ponto importante, que não deve ser desprezado, é o consumo energético da utilização de IA. Por exemplo, quando antigamente recorríamos apenas ao Google para pesquisar informação, agora também recorremos ao ChatGPT – uma pergunta ao ChatGPT requer pelo menos 15 vezes mais energia.

O que se está a fazer hoje com IA a nível internacional no combate às alterações climáticas?
Há imensos projetos nesta vertente. Um que acho muito interessante é o The Ocean Cleanup, um projeto de uma organização ambiental nos Países Baixos que usa IA para detetar plástico em zonas remotas do oceano que de seguida é removido. Esta abordagem é uma alternativa a abordagens anteriores em que era preciso sobrevoar essas zonas remotas do oceano com um avião. Mas há muitos mais projetos interessantes na agricultura, no transporte, na energia, etc.

Que país é hoje líder na investigação?
Vários países estão em força nesta área e nas várias dimensões que a rodeiam. Em termos quantitativos, existe um esforço significativo dos EUA e da China, não só pelo seu investimento tecnológico mas também muito pela dimensão dos países.

Por fim, a pergunta que todos fazem e que todos receiam a resposta. A IA virá a ser capaz de sentir, de ter emoções?
A resposta resumida é não, pelo menos não com o mesmo paradigma que conhecemos hoje. A tecnologia IA de hoje é apenas uma sequência de equações muito complexa que prevê de forma matemática o próximo output numa sequência. Não há qualquer tipo de consciência nem criatividade que vá além dos dados usados para treinar o modelo.


Da app para combater ataques de pânico até à IA

Natural de Barcelos, Luís Cruz é professor assistente na Delft University of Technology, nos Países Baixos. Pioneiro na criação da disciplina de Engenharia de Software Sustentável, foi na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto que iniciou a sua trajetória. Em Silicon Valley (Califórnia, EUA), desenvolveu uma aplicação móvel para monitorizar dados fisiológicos, visando a prevenção de ataques de pânico. Neste projeto, queria garantir que os pacientes pudessem usar a tecnologia sem preocupações com a duração da bateria dos seus dispositivos móveis. Daí até à investigação sobre o impacto ambiental do consumo de energia associado às tecnologias foi um instante. Tem liderado diversos projetos na área de “energy-conscious AI” e recebido vários prémios.