Valter Hugo Mãe

Fernando Santos


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A Galeria Fernando Santos completa 30 anos de existência e o país deve-lhe algumas das agitações mais importantes em torno da arte contemporânea. Desde o princípio que o seu espaço criou disrupção num meio bastante conservador, onde a arte era tantas vezes tratada com a pompa dos antiquários, tratada em muitas luvas e vitrinas resistindo contra linguagens mais informais e libertadoras.

Fernando Santos, que chegava da terra de Amadeo de Sousa-Cardozo, abriu o seu espaço à impaciência de colectivos de leitura e protesto, como eram os muito livres e magníficos colectivos dirigidos por João Gesta, e a arte plástica viu-se subitamente na praça das figuras mais inspiradoras, como Paulo e Pedro Abrunhosa, Rui Reininho, Daniel Maia-Pinto Rodrigues ou Ana Deus e Regina Guimarães. A galeria de arte era, ao jeito do que tanto acontecia no mundo anglo-saxónico, levada a desempenhar um papel total, o de abrir para todas as expressões, aludindo naturalmente ao gesto de pensar a arte para além de a expor e vender.

Depois de se mudar para a Rua Miguel Bombarda, a Galeria Fernando Santos criou o movimento único que leva grande parte dos pares a ocuparem a mesma rua gerando as inaugurações simultâneas que, até hoje, avalancham as pessoas nos sábados escolhidos por ali acima e abaixo. Algumas das maiores enchentes que vi para visita a uma exposição aconteceram ali. Em sábados especiais, quando Fernando Santos podia abrir Álvaro Lapa ou Nikias Skapinakis, muito se caminhou apertado, a ver as obras por cima dos ombros de outras pessoas, a espiar aos bocadinhos aqui e ali o que vai nas paredes ou pelo chão, pendurado ou até na palavra que passava de boca em boca.

Não sei que teatro teríamos para a arte contemporânea sem Fernando Santos, mas sei que não teríamos muito do que consideramos fundamental. Não passa apenas pelos artistas que elege, e que mantém com bastante rigor, passa muito pela mística, a capacidade de criar tendência, a inteligência de se manter fiel à sua essência e esperar. Deixar que as modas se decidam, quando ele já se encontrou há muito.

Sei que vai haver a maravilha de Jorge Galindo e Saint Clair Cemin, gigantes que rondam o Porto, e espero sempre por mais Avelino Sá e Ana Vidigal, Gerardo Burmester e Cabrita Reis, Pedro Calapez e António Olaio, mais Skapinakis, por favor, mais Lapa, por favor. Mais Jorge Perianes. Os 30 anos da Galeria Fernando Santos são também uma idade de maturação do país com a arte. São um aniversário de todos quantos entenderam como se faz cidadania a partir da irrequieta coisa de caçar ideias e dominar matérias, mudar as formas, inaugurar o futuro.

Este tempo passado é sobretudo modo de dizer que muito mais tempo precisamos. Isto tem de ser apenas o começo. Com o espaço aumentado para o dobro, a Galeria Fernando Santos faz pontaria ao que falta fazer. E quem está atento sabe bem que ali haverá de continuar a ser o lugar de tudo. Tudo melhor, quero dizer. Tudo muito melhor.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)