Margarida Rebelo Pinto

Fatias douradas


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

A morte de um sonho é tão triste como a própria morte, escreveu Truman Capote, cujo cinismo na escrita e na vida me fez acreditar, durante muito tempo, que não tinha coração, até ler um maravilhoso minúsculo livro intitulado “Um Natal”. Sempre tive um fascínio particular por livros pequenos, porque são muitas vezes mágicos e perfeitos. Este faz parte da minha coleção de eleitos, ao lado de “Seda” de Alessandro Baricco, de “Alexis” de Marguerite Yourcenar e de “A pérola” de John Steinbeck. A narrativa confessional é um mergulho na infância pobre de Buddy, um rapazinho sonhador que vive com uma prima sexagenária que o criou com toda a alegria, amor e carinho, uma matrona com superpoderes, capaz de matar uma cascavel de 17 metros à machadada, que gostava de dançar à chuva e fazia bolos inesquecíveis.

Todos guardamos na memória do palato os doces e salgados dos primeiros natais, recordações que nos trazem até ao presente fragmentos cristalizados da nossa infância. Aquela caixa de lápis espetacular oferecida pela tia-avó que viveu na Austrália e tinha uma belíssima cabeleira ruiva, por exemplo. Nunca me esqueci dos presentes da tia Dinora, por serem aquilo com que sonhara, ou então surpreendentes. No Natal seguinte deu-me uma boneca pequena, cuja cabeça se separava do tronco por um fio elástico e, graças a um chip, dizia frases divertidas na inevitável viagem de regresso ao corpo, várias frases em inglês claro está, sem que estas seguissem uma ordem linear, o que me causava alguma ansiedade. A minha preferida era “I lost my head over you”. Como todos os brinquedos dos anos 1970, foi feita para durar e nunca me desfiz dela.

Buddy recebia meias tricotadas e camisolas usadas por outras crianças no Natal. Um dia, apareceu um desconhecido que o levou para passar a quadra fora da sua casa, em NovaOrleães, o seu pai, um homem corpulento que adorava comer ostras e a companhia de senhoras menos recomendáveis. Buddy pensava que ia ver neve, mas não neva em Nova Orleães. O relato dos dias passados na companhia de um estranho que tentava, com pouco jeito, conquistar e entender o miúdo, enquanto este tentava também chegar ao seu progenitor é das narrativas mais pungentes que já li. Afinal, o autor de “A sangue frio”, que teve estômago para acompanhar um prisioneiro até ao corredor da morte e que alimentava a sua pena destruindo reputações alheias, fora uma criança negligenciada e mal amada por um pai egocêntrico e ausente. Sob o fundo empedernido de solidão que resulta do triunfo do cinismo sistémico, existiu sempre o coração de um rapazinho abandonado.

Passamos a vida inteira a resolver tudo o que vivemos até aos dez anos. São dez anos para sempre, que nos moldam o presente e o futuro. Uma infância numa família feliz e afetuosa com a mesa cheia de delícias prepara-nos para a vida de uma forma muito diferente daqueles que passaram fome ou sentiram falta de amor. O Natal pode ser uma celebração ou um momento de angústia para quem está doente, só ou deprimido. Cabe-nos acolher aqueles que não têm a mesma sorte que nós e partilhar com eles as fatias douradas da vida. Como escreveu Capote, já é difícil vivermos sem ter aquilo que queremos, mas o que mais me irrita é não poder dar aos outros aquilo que nós queremos que eles tenham.