Valter Hugo Mãe

Diário de Fátima Mendonça


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Na Galeria 111 vão expostos trabalhos em papel de Fátima Mendonça sob o título “Diário – dias incertos” e outra vez se estuda a crueza de sua personalidade vulnerável mas frontal. Fico sempre fascinado com o modo como assume sua perturbação, anotando seus dias de mulher, usando o corpo, aludindo às coisas da casa, da cozinha, da roupa, da explosão, como se não pudesse deixar de esperar que um dia tudo arda.

Fixo sobretudo a bravura de representar as pernas abertas de uma mulher, a vagina intensa, garrida, quase floral, eufórica, como uma carne ensimesmada de pensamento próprio, livre. Amo. E outra vez assim acontece. As pernas abertas, algo desimportantes, a vagina vívida de onde se levanta a combustão imensa. Entre o fogo, em bastante disfarce, há um rosto chifrudo, um espectro que nos espia. Não damos logo conta dele. A vagina é uma quase demasia e o olhar de quem chega tomba ali como chumbo ladeira abaixo. Quando descobrimos o rosto no fogo, há um susto e uma maravilha. Entendemos que somos também observados. Somos pensados pela obra, já invadidos.

Gosto de pensar na magnífica obra de Fátima Mendonça como invasora. Acredito que crie por uma necessidade de se desembruxar, como alguém que procura retirar do corpo, da cabeça, o precipício que nutre. Do mesmo modo, a obra inscreve inevitavelmente o precipício no observador. Ela invade o observador que se descobre subitamente atormentado, obrigado à valentia de não sucumbir. Quando estamos diante das obras de Fátima Mendonça somos desafiados muito ao pé de sucumbir.

Talvez todos os diários sejam uma espécie de solidão. As pessoas verdadeiramente acompanhadas não se iludiriam com as palavras ou as imagens. Quero dizer, todos os diários talvez sejam porque existem a tristeza, o medo, a angústia. A alegria não justifica um diário. Seria tola a pessoa que se detém a confessar ao leitor ou observador imaginários o quanto são prazerosos os dias e sortudas todas as decisões. O que Fátima Mendonça faz é de uma honestidade corajosa. Mais ainda porque tudo abeira a sua própria condição, sem necessidade de ir ao encontro de causas universais, diria, máscaras universais para se ilibar da assunção autobiográfica. Muito ao contrário, a honestidade de chamar “diário” a esta colecção é justamente a vontade de manter a arte no reduto da confissão e impor sua identidade como tópico bastante e legítimo.

A Galeria 111 é casa de algumas das mais impressionantes mulheres artistas de Portugal. Não posso deixar de lembrar a genial Paula Rego, pelo lado das clássicas, e Adriana Molder, pelo lado das gerações mais recentes. Absolutamente impressionantes as três, Paula, Fátima e Adriana, todas pertencem às minhas maiores paixões pelo mesmo motivo: não correspondem a nada do que seja o recato antigo que se impôs à mulher. As três são sobretudo a reacção incondicional aos fantasmas que as assombram. Fantasmas esses que atiram à rua, duros, sem mais trégua. Quem quiser que fuja. Isto não é para fracos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)