Dos nerds à democratização. A cultura pop está na moda

A banda desenhada com que todos crescemos, os super-heróis da Marvel e da DC Comics, as séries que são fenómenos de popularidade, de “A guerra dos tronos” a “Stranger Things”, os filmes que esgotam bilheteiras, os videojogos, o Japão e o cosplay. Este é um universo onde cabe o mundo e que tem vindo a ganhar escala, à boleia de eventos como a Comic Con Portugal, que está a completar dez anos.

Joana Abreu lembra-se como se fosse hoje do dia em que entrou, pela primeira vez, na Comic Con Portugal. O então namorado, hoje marido, João Marques, fã de animes (desenhos animados japoneses) desde catraio, consumidor ávido de séries, já lhe tinha falado do universo da cultura pop e convenceu-a a ir. Estávamos em 2015, na segunda edição da convenção no nosso país, e abria-se aí uma porta que não mais se fechou. “Nesse ano, a Joana gostou tanto de ver as pessoas vestidas de personagens que quis no ano seguinte experimentar. E desde então tem sido ano sim, ano sim”, comenta João, de 29 anos, um ano mais velho do que Joana. Mergulharam, então, no mundo do cosplay, que consiste em vestir-se, caracterizar-se e comportar-se como uma personagem específica de um filme, de uma série, de uma banda desenhada (BD), de um videojogo. Sendo fãs de séries e filmes, não era difícil acabarem rendidos.

Moram em Vila Nova de Gaia e faltava ainda meio ano para a edição de 2016 da Comic Con quando se enfiaram em lojas de tecidos. “Nenhum de nós sabia costurar, então pedi ajuda à minha mãe. Medições para aqui, costura para acolá”, lembra Joana. Tudo para dar forma às roupas de Jorah e Daenerys, personagens de “A guerra dos tronos”. A mãe só conseguiu dar a tarefa por terminada na manhã do primeiro dia do evento, depois de trabalhar madrugada dentro. Foi o primeiro de muitos cosplays, de uma tradição que ganhou raízes e ficou séria, de muito investimento. Gostam dos detalhes, de ir ao pormenor nas cores e texturas. Um dos cosplays mais caros que criaram ficou-lhes por cerca de 500 euros, eram o Steve e a Robin de “Stranger Things”. “Gastei 80 euros só nas sapatilhas”, conta João. Escolhem sempre uma série ou um filme (este ano será “Hunger Games”) que esteja na berra e personagens ligadas entre si.

Nos princípios, muitos amigos lhes estanharam o hobby. Hoje não tanto, o fenómeno que há uma década parecia ser de nicho tem vindo a ganhar escala – lá iremos. Pelo caminho, casaram e o mundo da cultura pop entrou até nos votos de casamento. Não é de estranhar, embrenharam-se de tal forma neste universo que já chegaram a fazer-se à estrada para ir à Comic Con de Madrid. Nos sonhos estão paragens mais distantes, como Londres ou San Diego (a convenção que já leva 50 anos de história). “A Comic Con é muito mais do que animes, séries ou gaming. Conhecemos muita gente. E, por exemplo, foi lá que descobrimos o gosto por jogos de tabuleiro. Todos os anos compramos um, é sagrado”, relata Joana.

É preciso recuarmos a 2014 para tomarmos o pulso a tudo isto. Paulo Rocha Cardoso cresceu a ler banda desenhada norte-americana, da Marvel e da DC Comics, tem a coleção inteira do Super-Homem, é fervoroso fã do X-Men. “Isto sempre fez parte da minha vida, estas personagens, os valores que os super-heróis representam, e acho que também fez parte da construção da minha personalidade.” À BD junta-lhe tudo o resto, é aficionado de cinema, de videojogos. “Na realidade, a cultura pop não é mais do que algo que é reconhecido pelas massas.” Tanto assim é que Paulo percebeu o potencial e quis criar uma convenção em Portugal que agregasse tudo isto e que fosse mais do que um encontro de fãs, que envolvesse a indústria. Um festival geek.

Já trabalhava na área dos eventos, juntou-se a um grupo de empresários para fazer acontecer, muitas viagens para os Estados Unidos, muitas reuniões, para criar parcerias com estúdios, editoras, distribuidoras, a Sony Pictures, a Warner Bros., a DC Comics. Nascia assim a Comic Con Portugal (o nome já tinha peso lá fora), que está a completar dez anos. E tanto mudou desde então. “No início foi difícil, a comunidade de fãs cá não era consistente, estava dispersa. Ser geek ou nerd ainda tinha uma conotação pejorativa, hoje já é ‘cool’. Porque, na verdade, todos somos geeks, todos crescemos com marcas como a Lego, a Disney, a Marvel, os videojogos. Todos brincámos em miúdos às Navegantes da Lua, ao Batman, às Tartarugas Ninja. A Comic Con só criou uma comunidade em torno de uma paixão de milhares e milhares de pessoas.”

Há uma regra de ouro: o evento só promove conteúdos que têm distribuição em Portugal. O que hoje está muito mais facilitado, nomeadamente com a implantação das plataformas de streaming, da HBO ao Disney+. E, claro, tudo o que é português também entra, a indústria nacional deu um salto na última década, com produções que são verdadeiros casos de popularidade, como a série “Rabo de Peixe” na Netflix ou o programa “Taskmaster” na RTP. O objetivo inicial era atingir os 100 mil visitantes em cinco anos, mas os números foram bem mais expressivos, já contam mais de 720 mil, com uma pandemia pelo meio. Começou na Exponor, em Matosinhos, aonde regressa na edição dos dez anos (que arranca na próxima quinta-feira e contará com dez palcos), mas ao longo do tempo também passou por Oeiras e pela Altice Arena, em Lisboa. Pelo caminho, conseguiu trazer nomes de peso a Portugal, autores de BD, realizadores, atores que nos habituamos a ver no pequeno e grande ecrã, Jason Isaacs de “Harry Potter”, Millie Bobby Brown de “Stranger Things”, Natalie Dormer de “A guerra dos tronos”.

João Marques e Joana Abreu tornaram-se cosplayers em 2016 e vão todos os anos à Comic Con Portugal. São até reconhecidos pelos visitantes habituais. O casal já chegou a levar seis meses a criar um cosplay. No ano em que se caracterizaram de Steve e Robin de “Stranger Things” gastaram cerca de 500 euros no figurino
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Depois há espetáculos ao vivo, torneios de videojogos, máquinas de Arcade, painéis de literatura, workshops. O caldeirão perfeito para um sucesso que tem vindo a agigantar-se. O CEO da Comic Con ainda lançou no ano passado uma agência de cosplay, a Pop Culture Agency, atividade que ganhou lastro com o tempo. Para os cosplayers que querem transformar o hobby numa profissão. Até porque, eis um dado curioso, “no mercado internacional esta é um indústria de 4,5 milhões de dólares (cerca de 4,1 milhões de euros) e em Portugal está a dar passos”, muito à boleia do evento. Nunca o slogan “Be whatever you want” (sê quem tu quiseres) fez tanto sentido. “Há pessoas que perdem meses a construir um fato e ver esse fenómeno crescer foi muito interessante.”

O cosplay como profissão

Angélica Pinho, 40 anos, é um exemplo paradigmático. Está em Almada, embora seja natural do Porto, embrulhada em trabalho, já em contagem decrescente para a Comic Con. Mas comecemos pelo princípio. Angélica estava na faculdade, a estudar Arqueologia, apaixonada que era por civilizações antigas, quando, para suportar os custos do Ensino Superior, começou a vender algumas das peças que fazia em feiras de artesanato. Aprendeu com a mãe a costurar, sempre levou jeito. “Desde pequena que alterava as minhas roupas, herdava as roupas dos irmãos, então personalizava com um bordado ou um retalho”, rebobina. Acontece que o negócio começou a ganhar dimensão e logo no final do curso decidiu levar o design de moda a sério. Abriu a loja Angélica Elfic, com peças inspiradas em elfos, em personagens de videojogos, como “Mortal Kombat”, no universo da fantasia, na saga “Senhor dos Anéis”, nos filmes de Tim Burton, desde miúda que é fã da cultura pop. E a Comic Con Portugal chegou como a montra perfeita. “Sempre gostei de acessórios de cabeça elaborados, de fatos diferentes de cabedal. Já na escola era a esquisita”, brinca.

Na primeira edição, criou uma personagem própria, um elfo punk, e assim foi vestida. “Fiquei maravilhada, encontrei mais cosplayers, fiz amigos para a vida, meti na cabeça que iria todos os anos.” Voltou na segunda edição para participar no concurso de cosplay, empenhou-se a explorar materiais para construir uma armadura, muitas tentativas frustradas na máquina de costura, com ferramentas para lixar, para serrar. “Acabou por correr bem. Fui vestida de Sylvanas do jogo “World of Warcraft”, uma personagem com que me identifico muito, e tive a sorte de ganhar logo.” Nunca mais parou. Foi depois jurada do concurso, deu workshops, hoje cria figurinos para teatro e cinema, é convidada para convenções pelo Mundo fora, tornou-se responsável pela área de cosplay da Comic Con Portugal. O cosplay virou, afinal, trabalho a tempo inteiro, a par da sua loja online. “Quando comecei, foi complicado, familiares e amigos diziam-me que não devia investir neste registo de fantasia. E na primeira edição, em 2014, este era um universo muito fechado, os cosplayers ainda eram olhados de lado. Agora vemos avós, pais, filhos e netos vestidos a rigor. A Comic Con veio normalizar e a verdade é que os workshops estão sempre cheios”, sublinha. A tendência, agora, é a impressão 3D.

(Foto: DR)

Segundo Helena Mendes Pereira, investigadora na área da Cultura Contemporânea, “o cosplay é curiosíssimo, não é como usar uma máscara no Carnaval, é um fenómeno de identificação com personagens, de ‘isto não é a minha máscara, isto é o que eu sou’”. A também curadora e diretora na Zet Gallery, em Braga, defende, contudo, que o fanatismo pela cultura pop não é de agora, embora hoje tenha uma expressão mais visível. “Portugal está inserido num contexto ocidental, muito influenciado pela cultura americana, fomos sempre altamente permeáveis a tudo o que vem dos Estados Unidos. E hoje, com um mercado global, as coisas circulam com mais facilidade ainda.” Não espanta por isso que outros fenómenos também tenham conquistado um lugar, nomeadamente do Japão, com a mangá (BD japonesa) e os animes (há dezenas de séries disponíveis na Netflix) que têm grandes bases de fãs no nosso país. “Nas novas gerações é algo muito mobilizador. Porque há uma ausência de ídolos e uma necessidade de identificação. Não é só um desenho animado ou um jogo de que gosto e que consumo, é alguma coisa com a qual quero ser identificado. Estes conteúdos respondem a algo que o indivíduo sente que só ele vê, só ele admira, sente-se único, mesmo que haja milhões a acompanhar.”

Há um facto indesmentível, o Japão entrou em força e o mercado asiático é gigantesco, basta ver que a Comic Con de Tóquio é uma das maiores do Mundo. “Os animes têm uma legião de fãs entre adultos. No passado, este tipo de conteúdos era visto como infantil, houve uma mudança de paradigma”, reconhece Paulo Rocha Cardoso. Também há espaço para este universo na Comic Con Portugal. Como há para concertos – e, sim, a música também pode ser cultura pop, quando ouvimos um tema da “Guerra das Estrelas” ou de “Indiana Jones” e imediatamente identificamos o filme. Ou lojas de merchandising. Este é um ponto importante. Até nas grandes cadeias de lojas de cultura, tecnologia e lazer se encontra um mar de figuras, estatuetas, legos, puzzles ligados à cultura pop. José Pedro Oliveira estudou o fenómeno para a sua tese de mestrado em Marketing na Universidade do Minho e não tem dúvidas que “a cultura pop tem crescido a olhos vistos nos últimos anos, está em todo o lado”. “E o facto de se colecionar este tipo de produto está muito ligado às emoções, tem a ver com o afeto por determinadas personagens. Os fãs são capazes de dar muito dinheiro, designadamente por edições limitadas.”

Os livros, as sagas, a BD

Kyle Sousa sabe bem disso. Aos 30 anos, já não é tanto de bonecos, é mais de colecionar livros. Tem as coleções de BD do Hulk, do Homem-Aranha, de Tomb Raider. Além de todos os livros da saga “A guerra dos tronos” em português, de “Dune” também (a parte 2 do filme de Denis Villeneuve, baseado no monumental clássico de ficção científica, está agora nos cinemas), uma eterna paixão. Mais, conseguiu todas as edições americanas originais de capa dura de Harry Potter. Na verdade, o amor pelo universo da cultura pop é antigo. Se recuar à infância, lembra-se de atazanar os pais para lhe comprarem bonecos do Homem-Aranha. A dada altura, começou mesmo a aventurar-se nas máquinas de costura da fábrica de confeção têxtil da mãe, para criar os próprios brinquedos, quando os pais começaram a pôr travão à febre. “Perdi a conta aos Homens-Aranha de trapos que fiz”, revela a rir. A par disso, desde que se lembra que é amante de cinema, era fascinado pelos filmes do Godzilla em pequeno, acabou mesmo por seguir essa área na universidade, trabalha como freelancer de produção audiovisual.

Faz contas de cabeça e crê que já foi duas ou três vezes à Comic Con. Guarda uma memória nítida da primeira vez em que entrou no evento, em Matosinhos. “Chegar lá e ver o trono de ferro de ‘A guerra dos tronos’ foi muito entusiasmante para mim. Nunca tinha estado num ambiente assim, com tanta gente que se identificava com este universo.” Descobriu aí milhares de fãs como ele. “A Internet e o streaming vieram dar acesso a muita coisa e muitos conteúdos que eram de nicho antes, hoje acabam por atingir outros patamares”, acredita Kyle.

Fã da cultura pop, Kyle Sousa é colecionador de livros. Tem as coleções de BD do Hulk, do Homem-Aranha, de Tomb Raider. Hoje, a sua maior paixão é a saga “Dune”, a obra de ficção científica de Frank Herbert (adaptada ao cinema). Já leu o primeiro livro mais do que uma vez
(Foto: Adelino Meireles/Global Imagens)

Não é esse o caso dos super-heróis da Marvel, que contam décadas e décadas e que há muito são terreno fértil das massas. Quando André Lima Araújo lia BD em miúdo, estava longe de sonhar que viria a ilustrar alguns títulos icónicos da editora norte-americana, de X-Men ao Quarteto Fantástico. Tem 38 anos, é autor e ilustrador, trabalhou na Marvel e hoje cria livros originais. Mas a história começou bem lá atrás. Logo depois de acabar o curso de Arquitetura, no auge da crise do imobiliário, foi até Lisboa de propósito para tentar falar com C. B. Cebulski, atual editor-chefe da Marvel e à época caça-talentos, que ia marcar presença no “Amadora BD”. Pensando bem, sempre quis fazer BD, lembra-se de ter livros de BD mesmo antes de saber ler, do Tio Patinhas, do Pato Donald. Mais tarde recorda-se de devorar as traduções em brasileiro dos super-heróis americanos que havia em Portugal nos anos 1990. E de Lucky Luke, do Astérix, de Dragon Ball. “A minha mãe trabalhava na Biblioteca de Ponte de Lima e fui descobrindo tudo lá. Mas achei que em Portugal não tinha grande hipótese, por isso fui para Arquitetura”, partilha. Só que naquele ano quis atirar o barro à parede. Correu bem, trocou contactos com Cebulski, mostrou-lhe o portefólio que criou de propósito para aquele momento e o resto foi um sonho a virar realidade. Em 2012, já estava na Marvel.

Trabalhou sempre à distância, a partir de Ponte de Lima, e gastou uma parte do primeiro ordenado para ir à Comic Con de Nova Iorque só para conhecer pessoalmente as pessoas com quem trabalhava. Ao longo de sete anos, desenhou quase todos os heróis da editora ao mesmo tempo que ia trabalhando em originais. Nas redes sociais, foi descobrindo muitos editores e escritores, foi tentando a sorte, enviando mensagens, e foi assim que acabou a lançar o policial negro “A righteous thirst for vengeance”, com Rick Remender. Ou o projeto “Phenomena” com Brian Bendis. Ainda desenhou uma história para a DC Comics.

André Lima Araújo é autor e ilustrador, trabalhou sete anos na Marvel, desenhou títulos como X-Men, Homem-Aranha ou Black Panther. Ainda criou para a DC Comics, sempre a partir do seu escritório de casa, em Ponte de Lima. Hoje, só trabalha em livros originais
(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

“De vez em quando caio em mim e tenho uma espécie de choque. Não é possível a minha vida ter dado nisto”, confessa. Enquanto está a desenhar, vê séries, filmes, faz pausas com videojogos. Não é só ilustrador e autor, é fã deste universo. Tem uma montanha de livros empilhados na secretária, compra BD em todas as línguas, mesmo aquelas que não fala, “desde que goste dos desenhos”. Nos últimos anos, diz, a BD voltou a ganhar força, a mangá veio ajudar a isso, e também ele é amante da cultura pop japonesa, foi ao Japão de lua de mel, “foi como entrar num anime real”. No próximo fim de semana vai à Comic Con Portugal como convidado. Talvez encontre por lá fãs que têm todas as suas coleções originais, como já lhe aconteceu antes. “Essa é a parte mais recompensadora. De repente, com a Internet, os geeks descobriram que não só não eram assim tão poucos, como eram imensos. E isso fez explodir estes festivais e legitimar esta paixão”, sustenta. Há uma certeza, o fascínio ganhou dimensão. E segue vivo, entre miúdos e graúdos.