Margarida Rebelo Pinto

Antes a gula


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

A primeira coisa que esquecemos de uma pessoa é a voz. E a última, ou talvez a que nunca se desvanece, é o cheiro. Aromas da infância colam-se à memória até ao fim da vida e podem voltar de repente, fazendo-nos viajar até ao passado e acreditar que o tempo é um trapaceiro que nos troca as voltas.

Um dos aromas inesquecíveis da minha infância é o da marmelada caseira. O grande evento dava-se em setembro: a cozinha da quinta dos meus avós no Ribatejo enchia-se de panelas gigantes e os netos sentavam-se em volta da mesa de pedra a descascar marmelos maduros e sensuais. A dimensão dos recipientes era tão impressionante que eu imaginava uma dúzia de Joões Ratões submersos, empurrados sempre na direção dos ponteiros do relógio pelo movimento regular de uma enorme colher de pau, à medida que a fruta amolecia e cozia sob o lume brando. Lembro-me da minha avó mencionar a regra de ouro de girar a colher sempre para o mesmo lado. Fazer marmelada é, antes de mais, um ato de amor, porque requer paciência, e onde há paciência, geralmente o amor também não falta. Horas depois, vertia-se o resultado de uma cor que ainda hoje não sei definir para mais de 30 taças redondas e fundas de várias cores, certamente da loiça das Caldas, e deixava-se arrefecer.

Era aquela marmelada esmagada entre bolachas de água e sal que me adoçava os invernos gelados à porta do prédio à espera da camioneta do colégio e que me fazia engolir a insípida e obrigatória maçã no fim de cada refeição. Um mimo quotidiano que saboreava com pão, com banana ou com nada, em investidas clandestinas à dispensa para surripiar uma fatia torta e fininha com sabor a fruto proibido. Ao lado, a geleia em frascos de vidro, cujo processo de fabrico lembrava truques de alquimista, também tinha o seu encanto. Contudo, o perigo de ficar lambuzada, deixando vestígios do delito, dissuadia o meu apetite.

Mesmo industrial, sabe sempre bem, porque basta uma pequena porção para me tirar fome, o que faz com que uma porção dure imenso tempo. E eu gosto das coisas que duram imenso tempo, como certas relações abençoadas que vão apurando à medida que o tempo corre, nas quais o coração e o corpo se organizam no melhor dos sentidos para que os nossos cinco sentidos possam dar o seu melhor, e receber em conformidade.

Sei que o açúcar é um veneno letal, mas a marmelada ainda é e continuará a ser a materialização do meu pecado da gula, enquanto não chegam as incontornáveis bolas de Berlim a inaugurar a época balnear, que têm origem numa receita trazida pelos refugiados judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Nunca percebi porque é que a gula, que só diz respeito aos desejos de cada um, entra no rol dos pecados capitais, equiparada a defeitos de caráter tão graves como a inveja, a cobiça ou a preguiça. A gula começa quando deixamos de ter fome, escreveu Alphonse Daudet, o escritor francês que não se coibiu de usurpar alguns contos do seu amigo Paul Arène quando publicou a sua obra mais conhecida, “Cartas do meu Moinho”.

Posto isto, mais vale ser guloso do que invejoso, mentiroso e usurpador. Roubar uma fatia de marmelada não se compara a roubar uma história a um escritor.