Um furto enquadrado
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Existe a figura do furto qualificado, não a do enquadrado. Pedro espreitou dois berbequins profissionais, quatro baterias, caixa de brocas, fita métrica numa carrinha em Lisboa. Um tesouro de ferramentas para um manobrador de máquinas como ele. No entanto, roubou-as e vendeu-as. No mesmo dia, apanharam-no e conduziu a Polícia ao intruja que tinha comprado as ferramentas.
– Eu pedia à meritíssima juíza que me permitisse fazer o enquadramento dessa situação, começou Pedro.
– Então faça lá o enquadramento. Mas de uma forma simples e directa, que é para todos percebermos o enquadramento, se não ficamos desenquadrados. Diga lá.
– Em 2014, mais concretamente em Fevereiro, eu fui dispensado de um trabalho onde já estava há dez anos, dos quais nos três últimos já estava efectivo. Posteriormente, separei-me e, ainda nesse ano, veio a falecer um familiar próximo. Esse ano foi muito mau para mim.
– Trágico para si.
– Sim. Eu fiquei muito perdido, desnorteado e… e fui por onde não devia ter ido. Comecei a consumir substâncias.
Saíram-lhe os primeiros soluços na respiração.
– Heroína. Nesta situação, eu estava completamente com sintomas de abstinência dessa substância, completamente perdido, sem saber o que fazer e levou-me a tomar esta…
– E fez isto.
– E fiz isto. Estou muito arrependido!
Hoje trabalha, o consumo está controlado. Surgiu-lhe uma lágrima que, apesar de redonda, se enquadrava no osso magro. Mas a seguir o advogado de Pedro pegou na régua e esquadro errados.
– Senhor Pedro, está a fazer uma confissão da acusação do Ministério Público. Como foram recuperados estes bens?
– Depois de vender, a Polícia foi ter ao domicílio, já sabia o que tinha acontecido. Eu acompanhei os senhores agentes à esquadra. Eu virei-me para o agente e, directamente, disse-lhe para irmos buscar as coisas.
– Então foi por sua livre e espontânea vontade que indicou onde é que estava…
– Fiz por livre vontade, porque eu, mais do que nunca, queria resolver esta situação, porque eu já na altura… isto é… tenho tantos anos e nunca cometi crimes destes!
– Disse também, continuou o advogado, que quando praticou estes actos de apropriação dos bens na viatura estacionada, que estava com sintomas de abstinência. O senhor tinha consciência do que estava a fazer?
– Não, eu estava completamente desnorteado.
– O senhor tinha consciência do sítio onde estava?
Então, lá do centro da sala, soltou-se um suspiro-trovão da juíza:
– Sotor, vamos terminar a gravação, se faz favor. Vamos esclarecer uma questão. O senhor, como o sotor já disse, fez a confissão dos factos. Se o senhor vai para a consciência ou não-consciência, e se vai para a situação de privação de produto estupefaciente, o sotor está a prejudicar o arguido porque está a colocar em causa a confissão. É por esse caminho que o sotor quer seguir?…
– Meritíssima, se me permite, estou a seguir pelo estado de…
– Sotor, anomalia psíquica, não tem nenhum documento médico que o prove e não é o sotor que a vai declarar!
– Não, de todo, mas…
– Volto a fazer-lhe a pergunta: o senhor quer seguir por esse caminho, pondo em causa a confissão, prejudicando o senhor arguido ou, pelo contrário, vamos aceitar a confissão integral e sem reservas do senhor arguido?
– Vamos aceitar, disse o advogado e fechou a caixa da língua.
– Pode pôr a gravar, por favor, disse a juíza ao meirinho.
Virou-se para Pedro, em mãe severa:
– Senhor arguido, quando o senhor, de forma livre e espontânea, explicou que o que consta da acusação é verdade, estava a confessar os factos. Ninguém o obrigou a fazer isso, foi o senhor que decidiu livremente, não foi?
– F… foi!
Vieram as alegações e a procuradora da República lembrou que, afinal, Pedro já tinha sido condenado mais duas vezes por crimes semelhantes. A multa não fora suficiente, prova disso é que “aqui estamos no dia de hoje a julgar” outra vez, pelo que se devia subir um degrau para pena de prisão. É também enquadrar a situação.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)