Valter Hugo Mãe

Praia


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Na mercearia, há muitos anos, uma doutora de França exigia passar à frente por ser doutora e por ter a generosidade de gastar dinheiro na nossa terra de merda. Que a França é que era um país a sério.

Os banhistas chegam como se isto fosse tudo para deitar fora no dia seguinte. Quem está de férias não quer responsabilidades, só quer fartura e mimo, como as crianças. Vamos fazendo a normalidade possível, mas é duro. O banhista vem à pressa, tem quinze dias para ser feliz e o mais que faz é praticar os nervos, ávido de uma compensação para o que sofreu num ano de trabalho, para o que paga num quarto pequeno, para a distância a que se encontra de uma vida de sonho.

Na fila da churrascaria, um banhista berra com um velhote muito atrapalhado que não se consegue expressar. A moça veio buscá-lo para que avançasse, uma vez que a fila gigante era para frango e ele queria outra coisa qualquer. O banhista ficou furioso que fosse atendido primeiro. Expliquei-lhe que sempre houve duas filas ali. Achei que bastaria a idade para revelar justiça, e certa deficiência, um declínio já grave do corpo. Mas o banhista estava tão esfaimado por seu frango que pouco quis saber. Os quinze dias de férias, mais o preço do quartinho, provavelmente a vidinha que leva, pareceu-lhe um direito soberano a ser exercido em cima do outro. Desatou aos insultos num ódio assinalável. A sorte foi que um moçoilo das pescas, já saturado, lhe perguntou alguma coisa. O banhista mandou-o calar e levou com dez anos de descer e subir redes ao mar entre os olhos. Adormeceu no passeio das Caxinas igualzinho à Cinderela. Era, subitamente, um sossego. Depois, na fila, diziam as pessoas: foda-se, vêm para aqui sujar isto tudo e ainda insultam as pessoas. É encostá-lo aí na beirinha a descansar. Assim é que são férias.

A economia das Caxinas já se valeu mais dos quartos de verão. Agora, com as novas estradas, os banhistas chegam aos dias, mais aos fins-de-semana, e regressam a Guimarães ou a Penafiel quando escurece. Contudo, é imutável o sentimento de invasão algo agressora, essa coisa muito especial de os visitantes se alojarem em casas privadas e procurarem caber em circuitos comuns, sem indústria de hotel ou resort. Para os caxineiros, o que vale ganhar esse dinheiro extra também é o quanto se obrigam a respirar fundo e a tolerar a confusão, a falta de privacidade, o tumulto nos serviços mais simples.

Lembro-me de sermos miúdos e passarmos os verões na rua porque as casas estavam ao serviço dos banhistas. Não podíamos usar a cozinha nem ver televisão. Os filhos dos banhistas ocupavam tudo, passavam a ter direito a tudo, e nós devíamos andar à deriva à espera que acabassem as férias de toda a gente. Era de tal maneira que muitas vezes tínhamos pudor de entrar nas filas das lojas. Íamos ficando para trás, convencidos de sermos todos empregados da multidão de visitantes. De vez em quando, alguém se insurgia. Na mercearia, há muitos anos, uma doutora de França exigia passar à frente por ser doutora e por ter a generosidade de gastar dinheiro na nossa terra de merda. Que a França é que era um país a sério. Naquela altura, a gente achava que em França devia escorrer ouro pelas paredes, mais chocolate e morangos, mais namoradas nuas.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)