O mercado milionário do “sangue jovem”

Tal como a parabiose, também a busca pela juventude eterna não é um tema recente (Foto: AdobeStock)

O procedimento chama-se parabiose e promete ser o elixir da juventude. Nos Estados Unidos, os estudos sem validade científica passaram a negócio de milhões. Os riscos, as promessas ocas e as futuras utilizações (saudáveis) do plasma.

É do conhecimento comum como é que os vampiros, personagens mitológicas, se mantêm vivos. A sua busca incessante por sangue, para se alimentarem e manterem um aspeto jovem, mesmo quando têm centenas ou milhares de anos, percorre, há séculos, livros, teatros, filmes e séries televisivas. Mas a ficção foi desafiada pela realidade quando, em 2016, nos Estados Unidos, começou um negócio digno de uma narrativa de Hollywood: venda de sangue “jovem” para rejuvenescimento.

O conceito parece simples. Pessoas que procuram um milagroso elixir da juventude recebiam transfusões de plasma – a componente líquida e sem cor do sangue, que transporta as células do mesmo – de pessoas mais jovens. As promessas eram muitas, mas o procedimento não estava ao alcance de qualquer um. Uma transfusão, equivalente a cerca de um litro, atingia os oito mil euros. Além do custo elevado, a “moda” não escapou à polémica. E a uma “reprimenda” de cientistas e organizações institucionais.

No início de 2019, a Administração de Drogas e Alimentos dos Estados Unidos – Food and Drug Administration (FDA), no nome original – lançou uma declaração oficial sobre o assunto, reiterando que “não há benefício clínico comprovado da infusão de plasma de doadores jovens para curar, mitigar, tratar ou prevenir” quaisquer condições alegadas pelos “vendedores de sangue”. “Os tratamentos que usam plasma de jovens doadores não passaram nos testes rigorosos que a FDA exige para confirmar o benefício terapêutico de um produto e garantir a sua segurança.”

A par com as promessas sem validação científica, os “riscos associados ao uso de qualquer produto plasmático” são o problema central da tendência norte-americana. Devido às dosagens que podem “envolver a administração de grandes volumes de plasma”, há “riscos significativos, incluindo infeciosos, alérgicos, respiratórios e cardiovasculares, entre outros”. No mesmo dia da declaração da FDA, a principal empresa norte-americana a atuar na área encerrou, voltando ao ativo poucos meses depois – mas já lá vamos.

A ciência desaprova

Desde o início do “negócio” que diversos cientistas alertavam, tal como a FDA o fez mais tarde, para a falta de validade científica das transfusões de plasma na reversão do envelhecimento. A par desses alertas está também Ana Parente Freixo, médica de imuno-hemoterapia do Hospital de Santa Maria, no Porto. “Deve ficar bem claro que não existe qualquer evidência científica quanto à eficácia deste procedimento.” Técnica essa que, tal como os vampiros, não é de agora. “A hipótese de que o sangue de pessoas mais jovens poderia ter propriedades antienvelhecimento vem de experiências com mais de 100 anos”, explica a médica, detalhado que o procedimento utilizado pelo cientista francês Paul Bert passava por ligar a circulação de um rato mais jovem a um mais velho.

Chama-se parabiose e resultava em “melhoria da condição do animal mais velho e agravamento da do mais jovem”. Mas Ana Parente Freixo adianta que “a explicação para os resultados não é completamente compreendida e provavelmente se deve a fatores não relacionados com o envelhecimento em si”.

A juventude eterna

Tal como a parabiose, também a buscar pela juventude eterna não é um tema recente. A médica imuno-hemoterapeuta afirma que “a procura pelo elixir da juventude e por tratamentos de rejuvenescimento ‘milagrosos’ é centenária e uma das grandes obsessões da Humanidade, que, pela sua própria natureza, tem dificuldades em aceitar o envelhecimento como um processo natural”.

A vontade de rejuvenescer dos milionários norte-americanos e as bases científicas instáveis da parabiose aliaram-se e deram origem ao que Ana Parente Freixo descreve como uma “rentável oportunidade de negócio”. Em 2016 começaram a surgir startups, principalmente sediadas em Silicon Valley, na Califórnia, Estados Unidos, que vendiam plasma de pessoas jovens com promessas de antienvelhecimento. A médica do Hospital de Santa Maria denuncia: “Essas empresas atuam com um foco meramente comercial, com o lucro como principal objetivo”. O que, aponta, não pode acontecer na Medicina.

A Ambrosia foi criada em 2016 por Jesse Karmazin, que não tem licença médica. A startup dedicou-se à comercialização de plasma de pessoas jovens, prometendo efeitos de rejuvenescimento
(Foto: DR)

Foi em 2016 que a empresa Ambrosia abriu, pela mão de Jesse Karmazin, que não tem licença médica. De início, a startup tinha o propósito de realizar testes sobre a eficácia do tratamento de rejuvenescimento com plasma “jovem”. Apesar de serem apenas ensaios clínicos, feitos com um produto ainda não comercializado, os participantes tinham de pagar pelo mesmo. Cerca de oito mil euros. Passados dois anos, a Ambrosia já se tinha espalhado por cinco cidades norte-americanas. Até que, em 2019, chega o aviso da FDA. Karmazin fechou a empresa.

Pouco depois, abriu o mesmo negócio com um outro nome – Ivy Plasma. Voltou meses depois a atuar sob a designação da empresa original, sendo que, atualmente, o site da Ambrosia se encontra desativado.

Os resultados nunca publicados

O jornal científico norte-americano “Scientific American” escrevia, poucos dias após a declaração da FDA, que “o empresário por detrás dessa empresa [Ambrosia], Jesse Karmazin, ainda não relatou os resultados do ensaio clínico” realizado no início da atividade. Nem em 2019, nem agora.

Apesar de questionado pela comunicação social norte-americana, o empresário nunca se pronunciou sobre os nomes dos médicos que realizavam as transfusões, ou o número de clientes que chegou a efetuar o procedimento. Apesar de ser a mais falada, e a única centrada apenas na comercialização da parabiose, a Ambrosia não foi (ou é) a única clínica a realizar o procedimento nos Estados Unidos.

Já a startup Alkahest, fundada em 2014 pelo neurologista Tony Wyss-Coray, seguiu um caminho diferente. A empresa especializada em ensaios clínicos com transfusões de plasma diz procurar melhorias em doentes com Alzheimer e Parkinson. O plasma não é introduzido no corpo do recetor “na totalidade”, sendo apenas uma fração específica do mesmo, e não há qualquer pagamento associado. Ainda assim, os estudos são financiados por fundos privados.

Os primeiros resultados publicados mostram ligeiras melhorias da capacidade cognitiva dos doentes, mas a revista científica “Nature” classificou-os como demasiado preliminares. Seguem-se outras empresas americanas, como a Elevian, que, tal como a Alkahest, procura, através de financiamento privado, estudar a possível comercialização de plasma para tratamento de doenças degenerativas. Ainda que apenas atuem em ensaios clínicos, não escapam às críticas por parte da comunidade científica e de clínicas sem fins lucrativos.

Para lá dos problemas de saúde

Para Ana Parente Freixo, “a prática coloca questões éticas e legais”. Primeiro, por vender algo sem eficácia comprovada. Depois, por acarretar riscos clínicos, “tais como transmissão de infeções, complicações pulmonares e cardíacas”. Por último, a médica do Hospital de Santa Maria realça um terceiro problema: o facto de o sangue “ser um recurso limitado, dependente de dadores benévolos e muito necessário, com indicações clínicas concretas, e que, por isso, a sua utilização deve ser criteriosa”.

A transfusão de plasma em contextos terapêuticos é classificada pela especialista como “uma prática fundamental em Medicina”. Atualmente, há eficácia clínica comprovada para transfusão em pessoas com problemas de coagulação. Para o futuro, a imuno-hemoterapeuta olha com esperança para o uso de “constituintes do sangue, especialmente leucócitos para combater infeções ou células estaminais na regeneração de tecidos e na terapia génica”.

Tony Wyss-Coray é médico neurologista e criou a startup Alkahest em 2014 para se dedicar ao estudo das potenciais vantagens das transfusões de plasma em pacientes com doenças degenerativas
(Foto: DR)

Durante a pandemia, as transfusões de plasma foram uma hipótese em prática, na Europa e até em Portugal. O plasma de pessoas recuperadas, chamado de plasma convalescente, era transfundido para pessoas com infeção, “uma vez que os anticorpos contra patógenos circulam no plasma”, avança Ana Parente Freixo. A prática foi utilizada antes do aparecimento da vacinação para o SARS-CoV-2 “e continuam a decorrer estudos nesse contexto, com alguma evidência especialmente se utilizado plasma com altos títulos de anticorpos”.

O uso de plasma para fins terapêuticos é inegável (e já comprovado). Já a sua colocação lado a lado com promessas de rejuvenescimento e fins comerciais é malvista por médicos e cientistas. Para Ana Parente Freixo, “o fundamental é continuar a investigar de forma ética e com estudos científicos robustos”. E, reforça, “a dádiva de sangue deve ser mantida benévola e a compra ou venda de sangue não deve ser promovida”.