Joel Neto

O balão à transparência


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

E eu quero perder o controlo. Quero chorar de alegria. Choro pouco de alegria.

O pior de tudo é a antecipação. O compasso de espera. A incerteza sobre se irá realmente acontecer – a desconfiança. O pai que aguarda tem pouco a que se agarrar: uma protuberância abdominal, oscilações nos humores, pouco mais. E além disso a minha história é longa, feita de retrocessos.

De modo que ainda há pouco tentámos animar-nos. Eu brinquei: “Come back daí para fora!” – como Jesus Cristo dizia a Lázaro na versão de Joe Canoa, a delirante personagem de Marcolino Candeias que o Vasco Pereira da Costa interpreta tão bem. Ela sorriu. Mas, de cada vez que a faço sorrir assim, gastamos uma ficha das mais baratinhas, que são as que nos resta – e ambos sabemos disso.

Artur. Ainda ontem chegou da China o carimbo com o nome dele e um ursinho – para etiquetar as roupas, francamente já não sei em que circunstância. De manhã, antes do trabalho, passei na garagem a dar uma terceira demão de tinta no ginásio que lhe construí. Ao fim da tarde, antes de fechar o computador, estabeleci o tom da crónica que imagino escrever quando ele nascer.

O quarto está pronto há semanas, com o berço, o sofá, os dois conjuntos de montanhas naïf que a Marta lhe desenhou nas paredes, as estantes que eu montei para a biblioteca que o Nuno lhe ofereceu. As malas foram feitas há tantos dias que já têm post-its colados: o Joel usou o cabo do telemóvel, voltar a guardar os AirPods, a powerbank está a carregar sob a chaminé.

De resto, silêncio. Se voar uma mosca, ouvimo-la. Uma lâmpada tremeluz na cozinha, com um mau contacto. Pinga uma torneira.

Ainda só fomos ao hospital duas vezes. Nem foi por paranóia – dessas só tivemos uma vez, como toda a gente tem direito -, mas para os CTG. A médica tentou operar as suas magias e mandou-nos para casa, para a Marta fazer exercício. Digo “a médica”, mas já não é “a médica”: é “a Joana”. Estamos nisto há tanto tempo que nos tornámos íntimos uns dos outros.

Leitores amigos, sobretudo leitoras, enviam-me mensagens: sentem-me ansioso. E não é totalmente verdade. Quero muito que ele chegue, mas a ideia de acordar de duas em duas horas para o passear pela casa, enquanto a Marta tenta voltar a adormecer depois de o amamentar, ainda me assusta.

Só que está tudo preparado, ponderadíssimo, hiper-racionalizado – até no caso desse plano para as noites de Inverno. E eu quero perder o controlo. Quero chorar de alegria. Choro pouco de alegria. Estou quase sempre do lado de fora do tubo de ensaio. A observar aquele homem de meia-idade, tão toleirão – a escrever estas crónicas.

Acho que não é ansiedade, não. A não ser a ansiedade de ver provada a desnecessidade da desconfiança.

É desconfiança mesmo.

E custa-me rir-me. Um dia destes a Marta, primeira leitora destes textos, levantou os olhos sobre a borda do computador e suspirou: “A próxima tem de ser divertida. Estás melancólico pra caramba.” E piscou-me o olho, porque também escreve – sabe bem que o que se vê no balão, à transparência, não é exactamente o que está lá.

O que está lá é entusiasmo. O que eu vejo é medo. E talvez seja cada vez mais assim, até que aconteça.

Mas hoje falta menos um dia.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)