Feliz Natal
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Mesmo debaixo de chuva, nos campos já alagados, ia uma mulher velha de galochas a mexer numas poucas coisas do chão que eu não distingui de um mato ralo. Vi-a quando passava para chegar a casa e fiquei perplexo ao vê-la, uma hora depois, saindo de novo a caminho do Porto. Mantinha-se calma na paisagem gigante, o campo gigante enlameado. Prosseguia sua tarefa miúda e estranha, igual a procurar na vastidão um anel caído ou uma moeda.
Mais de um mês depois, nas chuvas de Dezembro, a mulher velha voltou a estar ali no mesmo ofício. Os pés metidos numas galochas grandes e os olhos à procura. O campo todo sem nada muito crescido, apenas uma erva rasteira que me parecia inútil e sem mistério. Como andava pela berma da estrada, encostei o carro e fui meter conversa. Inventei que procurava a igreja e não conhecia o caminho. E ela logo me perguntou: o senhor comprou aquela casa ao pé da igreja e ainda não lhe viu das janelas a torre?
Estou careca de saber onde fica a igreja de Faria, vejo-a nas imediações da minha casa. Às vezes, aos domingos, tenho a impressão de que lhe põem umas colunas a tocar música de gosto duvidoso que não me deixa sossegar nem prestar atenção aos madrigais que prefiro. Quando a mulher me identificou senti uma vergonha súbita de me estar a meter na sua vida e assumi de imediato. Confessei que parei para saber que faz em tão bizarra canseira. Que procura. Que lhe caiu. E ela tanto me falava quanto continuava. Tinha uma pressa por dentro.
As chuvas de Dezembro subiram as águas nos campos mais baixos. O alagado mete algum medo. Eu ainda lhe perguntei se não havia perigo de cair em alguma funda que se abrisse sem mais nem menos. A terra toda esboroa e alui, o chão tem acidentes, não é direito. O corpo de uma velha tombado pode bem aninhar-se invisível num pouquinho de mato. Ninguém a veria para poder ajudar. E a senhora explicou: isto é para o meu Natal. É uma coisa do Natal.
Era sem sentido, para mim. Que a mulher visse palmo a palmo o alagado do campo para acudir ao Natal, não entendi. E ela não quis logo explicar melhor. Balbuciou umas desculpas aborrecidas, uma melancolia qualquer, e esperou que eu ficasse calado. Mas, agora, tinha a impressão de alguma tristeza e não aguentei sem insistir. A senhora, então, disse: caiu-me do bolso uma carta do meu filho e eu queria apanhá-la, nem que só um bocadinho branco do papel.
Depois que emigrou, o filho ficou sem corpo. Está à distância de um oceano e de seis anos. Seis anos que não lhe toca. A carta, dizia, trazia um bocado de cheiro. Era para juntar ao nariz e à boca quando lhe falasse por essa câmara da Internet. No Natal, dizia ela, a carta, nem que só um bocadinho, ia estar à mesa para imitar uma companhia a consoar.
Podia ser que a carta ainda boiasse. Podia ser que se tivesse desfeito em bocados e um só bocado pudesse esperar naquela erva ou água, lavadinho e fraco, mas precioso como um filho. De quem não se quer perder um instante.
Eu não sei que foi desta mulher. Mas, hoje, para o meu Natal, bastaria que as pessoas que se amam não se desperdicem. Que se lembrem de que termos quem amar é o mais puro privilégio.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)