Gostava de brincar às procissões, mas a mãe não o deixou ir logo para o seminário. Ainda jovem, recebeu a alcunha de “passe-vite”. Mais tarde, até Saramago conquistou.
D. Manuel tinha acabado de chegar ao Porto, deambulava em jeito de passeio turístico, lado a lado com Germano Silva, quando uma mulher abordou o ex-jornalista. Na genuinidade do discurso, saíram-lhe palavrões em catadupa, ela deu-se conta demasiado tarde, quando alguém a alertou para a identidade do homem que acompanhava o seu interlocutor. “Desculpe, senhor bispo, desculpe.” D. Manuel não pareceu importar-se. “Minha senhora, esteja à vontade.” A história, que remonta ao ano de 2007, é recordada por Germano ao jeito de prova do perfil humano do cardeal-patriarca de Lisboa. “É um homem afável, dialogante, que gosta de deixar as pessoas à vontade, muito carismático junto das populações”, conta, sem esconder a afinidade que os une.
Esse lado humano, agradável, sensível é-lhe elogiado por todos os que lhe são próximos. Artur Santos Silva, presidente honorário do BPI, que também com ele privou durante a passagem pela Invicta, enaltece uma “pessoa muito serena, conciliadora, que sabe ouvir o outro, sempre interessado nos problemas do país”. Isabel Figueiredo, diretora do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais da Igreja, vai mais longe: “É das pessoas mais sérias e mais íntegras que conheço, das poucas a quem nunca ouvi dizer mal de ninguém”. O elogio do caráter do atual cardeal-patriarca estende-se ao atual bispo do Porto, D. Manuel Linda. “É de uma lisura a toda a prova e um homem incapaz de mentir.”
A curta mas incisiva afirmação não parece dissociável do contexto conturbado que tem enformado os dias de D. Manuel Clemente, suspeito de ter ocultado um caso de abuso sexual a uma criança de 11 anos, ocorrido nos anos 1990. O clérigo defendeu-se, dizendo ter respeitado a vontade da vítima, que “não quis divulgar o caso”, mas não se livrou de um rol de críticas e vários pedidos de demissão. Já há quatro anos se tinha visto obrigado a justificar-se, depois de ter defendido a abstinência sexual para os “recasados” que quisessem frequentar a missa e ter acesso à eucaristia. Desde então, tem fugido dos holofotes. Talvez por isso haja quem lhe aponte, sob anonimato, o “caráter pastoralmente medroso, demasiado comprometido publicamente”, um certo estilo “excessivamente contemporizador”. Voltaria a estar na berlinda em 2020, quando subscreveu o manifesto que se opunha à disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento”. Foi então acusado de um “conservadorismo dececionante e indesejável”.
Nascido em Torres Vedras, Manuel foi o terceiro de quatro filhos. Ainda gaiato, brincava às procissões, gostava de fazer de padre. Aos 13 anos, quis ir para o seminário, mas a mãe não deixou: primeiro formava-se, depois logo se via. Mudou-se então para Lisboa, para prosseguir os estudos. Por lá, entrou no escutismo, onde recebeu a alcunha de “passe-vite”, “por ser muito despachado”. Na faculdade, começou por estudar Direito, mas às escondidas do pai matriculou-se em História, licenciando-se em 1974. Formou-se depois em Teologia, corria o ano de 1979, o mesmo em que foi ordenado presbítero, já com 31 anos. Desde então, foi subindo progressivamente na hierarquia. Em 1999, foi nomeado bispo auxiliar de Lisboa, em 2000 foi ordenado bispo, em 2007 Bento XVI entregou-lhe a diocese do Porto. Dois anos depois, recebeu o Prémio Pessoa. A ascensão não parou por ali: em 2013, assumiu o Patriarcado de Lisboa e em 2015 foi nomeado cardeal. Pelo meio, doutorou-se em Teologia Histórica.
“Sob o ponto de vista intelectual, é um homem extremamente bem preparado, com elevado nível de cultura, que não tem nenhum tipo de ‘parti pris’ em relação a textos de pendor mais de esquerda, mais de direita, mais anticlerical, é um homem com um espírito aberto”, sustenta António Tavares, provedor da Misericórdia do Porto. O padre António Janela, que o conhece desde o tempo em que era seminarista, lembra até que a erudição de D. Manuel “caiu no goto de Saramago, que tinha um grande apreço por ele”. E não esconde a admiração por um homem de “grande vigor intelectual, que tenta sempre ver o lado positivo”. Em relação ao trabalho feito no Patriarcado de Lisboa, destaca a mobilização do sínodo diocesano e a organização da Jornada Mundial da Juventude (que ocorrerá em Lisboa em 2023), embora reconheça que “nos últimos anos, há decisões de ordem pastoral que não têm sido tomadas”. Quanto à polémica do momento, não esconde a amargura: “Sofro com esta campanha que pretende atingir o poder da Igreja”.
Nome: Manuel José Macário do Nascimento Clemente
Cargo: cardeal-patriarca de Lisboa
Nascimento: 16/07/1948 (74 anos)
Nacionalidade: Portuguesa (Torres Vedras)