Jorge Manuel Lopes

A terra a quem a trabalha


Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.

As canções de “Fossora” (One Little Independent), o novo álbum de Björk, têm mais clarividência e propósito do que outros registos seus recentes. É mais um capítulo na vida do idioma intransmissível da artista islandesa, um mundo no qual os interessados já saberão ser necessário um bem-vindo ajuste mental para a ele aceder.

É o disco de regresso de Björk a casa, o primeiro desde a partida da mãe – duas canções têm a marca desse acontecimento: uma arrepiante despedida em “Sorrowful soil”, a muitas gargantas, com o Hamrahlíarkórinn; e “Ancestress”, uma derradeira, crua e evocativa conversa já com o vazio. Um disco composto durante e após os confinamentos pandémicos e que trata a terra sob os nossos pés como um cosmos, fonte de fantasia, renovação e vida, um livre-trânsito para a imaginação simbolizado na omnipresença temática dos cogumelos.

As 13 faixas de “Fossora” são amiúde construídas sobre a ação do sexteto de clarinetes baixo Murmuri – a feliz relação entre o canto de Björk e os sopros é sabida pelo menos desde “Debut”, o seu primeiro álbum a solo pós-The Sugarcubes, de 1993. Em seu redor podem brotar universos digitais minimalistas e explosões de batidas, em cujas programações a autora conta por vezes com a colaboração de Kasimyn, metade da tumultuosa dupla indonésia Gabber Modus Operandi – a combinação é especialmente estonteante num tema-título a duas velocidades. Um ensemble de câmara usa as cordas como pinceladas abstratas e expressivas.

O outro ingrediente central é a nebulosa de vozes que percorre o campo sonoro como lúdicas ou perplexas assombrações. Uma dança em que participam a cantautora norueguesa Emilie Nicolas, o polímata americano serpentwithfeet (um canto a dois entrançado na sensual “Fungal city”) e os filhos de Björk, Sindri Eldon e Ísadóra Bjarkardóttir Barney.

Em “Atopos” canta-se, “Hope is a muscle/ That allows us to connect”. A esperança é um músculo que nos permite conectar. De “Fossora”, obra mais triunfal do que introspetiva, a esperança emerge robusta.