Rui Cardoso Martins

Um choque no coração (e na bexiga)

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Era um “dia relativamente invernoso” numa esquina do Mosteiro dos Jerónimos, disse uma professora que ia a passar. Um caso pastoso como o recheio de um pastel de Belém fora de prazo. Duas jovens polacas viviam em Lisboa e no mesmo ramo: guias turísticas. Um dia, os turistas desviaram os olhos das gárgulas e dos arcos manuelinos e fixaram-nos neste século: uma mota aproximou-se pelas costas de uma jovem loira. Nessa mota, no lugar do pendura, seguia outra jovem loira que lhe tentou furtar a mochila à força. Resistência, gritos eslavos. Agora, num instante de ficção científica, a mulher da mota sacou de uma estranhíssima pistola plástica, preta e amarela como as vespas, e disparou ao coração da assaltada. Esta caiu no chão, fulminada por arames electrificados de um taser imobilizador. Aos saltos como um cação na estrada, fazia chichi pelas calças abaixo.

– Disse que a senhora tinha vindo na sua direcção para lhe roubar o dinheiro. Que tinha consigo cinco mil ou sete mil euros.

Mas o golpe falhou e o casal fugiu na mota. Um polícia foi chamado a “um roubo por esticão no Mosteiro dos Jerónimos”.

– Teria sido praticado por um casal numa mota, que depois se pôs em fuga. A minha preocupação foi ver se ainda os podia localizar naquela zona. A vítima disse que conhecia a pessoa que a tinha tentado assaltar.

E como é que a Polícia apanhou o casal suspeito?

– Disseram-me que essa senhora andava com um trolley cor-de-rosa. Um trolley não dá jeito para andar de mota.

O polícia pensou, pensou. Concluiu: eles ainda andam por aqui.

– E estavam hospedados num hostel da Rua dos Jerónimos.

Levou-os à esquadra. Negavam o crime (mais tarde disseram que a outra é que tinha tentado tirar-lhes a mochila, que ela só queria recuperar um estojo de toilette que emprestara à ex-amiga). Na esquadra em Belém tocou o telefone da suspeita. O polícia atendeu. Era um seu colega, que ligava da esquadra do Palácio Foz, que anunciou a novidade:

– Essa senhora aí, em princípio, é suspeita de um roubo.

Como é que ele tinha o número da suspeita? A assaltada dera-lho… A assaltante pediu para ir à casa de banho. O polícia foi depois investigar. E o que encontrou na casa de banho, atabalhoadamente torcida, rasgada, mas ainda assim reconhecível?

– Vejo uma embalagem em plástico de um taser.

Já a professora, na rua, pensara ser “uma brincadeira de alunos”:

– Que eles tiraram, ou tentaram tirar, eu vi. Se era deles ou dela, não sei. Não, nunca foi o casal da mota a ser assaltado! Eles não foram vítimas.

A professora viu a urina nas calças. A guia assaltada perdera o controlo do corpo com a violência do choque. Qualquer coisa como 50 mil volts no coração. O problema é que nem a vítima conseguiu dizer: afinal tinha quanto dinheiro na mochila, cinco mil ou sete mil? Era o dinheiro dos peregrinos recolhido para facilitar os pagamentos das diferentes estações da viagem, Fátimas para aqui, auto-estradas para ali, jantares para acolá, dormidas, etc.

A procuradora disse nas alegações:

– Andar com um taser… Não é objecto com que se ande como se anda com um bâton de cieiro.

Todos sabemos que ali nos Jerónimos há muitos carteiristas, acrescentou, mas “nenhum popular ia tirar a mochila à arguida, até porque se arriscaria a ser ele acusado de roubo”. A advogada da acusada alegou:

– Ela não tinha um taser, mas sim um telemóvel na mão! O taser era porque, como guia turística, anda por sítios perigosos no Mundo! Ela ficou assustada quando percebeu que andar com uma arma daquelas é proibido. E por isso é que deitou fora a embalagem! Ela é que deu emprego à queixosa!

Ficaram “uma a puxar a mochila da outra, numa espécie de dança, a ver quem tira o quê”.

– A senhora até disse que fez chichi pelas pernas abaixo. Mas não quis ir ao hospital, não há perícias… tem todo o direito.

A polaca da mota foi condenada por agressão com taser, mas absolvida do furto.

Tudo isto viram as gárgulas do Mosteiro dos Jerónimos, carantonhas assustadoras nascidas nas globalizações das viagens dos portugueses. Os cordames e velas de navios em pedra.

Agora as gárgulas viam consequências laterais do turismo de massas. Como dizem na Polónia, e dizemos por cá, koniec, fim.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)