Rui Cardoso Martins

Resvés campo da prisão

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Em data não apurada, em data que não é possível apurar, começava a juíza cada frase, em data que não se sabe exactamente quando, o que importa é que aconteceu. Muitas vezes, muitos crimes. A juíza despachava no sentido de cumprir o despacho, ler a sentença que escrevera antes. Mas estava também, percebi depois, a correr, a despachar-se para o que tinha de dizer ainda, de voz aberta, de olhos nos olhos do pequeno pulha que ia condenar.

Um rapaz de vinte e poucos anos, um metro e sessenta, barbicha que, pelos bordos da máscara anti-covid, mostrava marcas vermelhuscas no pescoço de peru – como se lhe tivessem arrancado as penas com água fria – e olhava estupefacto por perceber que uma mulher lhe podia falar assim. Tão novo nos ténis nos pés, no esqueleto debaixo da carne, tão velho em tudo o resto.

No início, eu mal entendia o que a juíza falava, parecia um desses anúncios da TV em que o locutor acelera inacreditavelmente, debitando as condições de um empréstimo que não dispensa a leitura do folheto. Em data não apurada, dizia a juíza, “enquanto batia no corpo da ofendida, dizendo-lhe és uma filha da puta, és uma merda, não prestas, não vales nada […] dando-lhe murros que provocaram dores […] um murro no rosto que a arremessou para o outro lado da sala […] quando se encontrava a tomar banho, o arguido arremessou uma lata de espuma de barbear contra a sua perna, provocando-lhe dores, […] feridas, cortes, hemorragias, muitos dias de doença […] quando estava aborrecido obrigava a ofendida a dormir no chão”.

E a acusação continuava, agora com os argumentos do acusado: “Que só admitia ter dado uns estalos, mas em reacção a insultos e agressões da parte da mesma, […] admitindo ainda considerar-se uma vítima da ofendida”. E que havia “muito a dizer sobre a personalidade distorcida do arguido”, até porque as agressões contra a namorada tinham sido confirmadas pelos próprios familiares dele… Ninguém conseguia falar com ela, porque lhe estavam barradas as chamadas. O homenzinho respirava no banco dos réus, esperando os números da sentença.

Que a ex-namorada era muito jovem e especialmente vulnerável por não ter tido familiares que tratassem dela e que o arguido, “aproveitando-se dessa situação, sempre que sentia algum tipo de frustração, descarregava” sobre a companheira.

– E não só em termos verbais mas físicos.

Foi aqui que a voz da juíza começou a subir a colina. Daí a pouco todas as palavras se ouviam como pedregulhos bíblicos a rolarem contra o agressor cá em baixo.

– Obrigar a companheira com quem vive, com quem está a partilhar a vida, a dormir no chão é algo horroroso, horroroso!… Não sei como é que alguém é capaz de tal coisa nos dias de hoje. Não só como é que é capaz de a submeter a isto, mas também como é que a outra pessoa é capaz de aceitar esta circunstância. Por outro lado, agressões, pontapés, murros a meio da noite, este tipo de insultos, pessoas jovens ainda no início da vida a fazer tal coisa, é absolutamente inadmissível, inadmissível, tanto mais que tiveram de ser os próprios tios do arguido a denunciarem a situação para pôr cobro a isto, juntando até ao processo fotografias do estado em que a senhora ficou. É vergonhoso, VERGONHOSO! E mais vergonhoso é o arguido vir aqui a julgamento e fazer-se uma vítima!

A pobre rapariga até as dívidas lhe pagara. O rapaz autor de violência doméstica foi condenado a três anos de prisão. Suspensa, porque é jovem, tem emprego e não tem antecedentes criminais.

– Mas esta derradeira oportunidade vai ser apertada, porque eu não vou tolerar qualquer tipo de contactos do senhor por qualquer meio: por telefone, por internet, pessoalmente ou por interposta pessoa!

E será obrigado a aconselhamento psicológico, a sessões sobre violência doméstica e está proibido de se aproximar a menos de 500 metros da ex-namorada. Qualquer violação e vai preso três anos. O rapaz saiu hirto como uma tábua. O advogado de defesa suspirou, aliviado:

– Foi resvés Campo de Ourique…

O funcionário judicial olhou o rapazito que se afastava. Estava cansado da sua sabedoria de anos no tribunal, e disse-me:

– Cheguei a pensar que isto ia acabar, que eram coisas de outras gerações de homens, e descubro que isto recomeça com os mais novos, que nunca vai acabar.

Feliz Ano Novo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)